A depressão é um fenômeno multifatorial e complexo – que envolve a interação entre nosso corpo, hormônios, a genética, fases e acontecimentos da vida, meio social, cultural, uso de álcool e drogas… Não à toa que dificilmente uma única área do conhecimento vai dar conta do entendimento do fenômeno, mas um estudo publicado recentemente no prestigiado JAMA Psychiatry, publicação científica da Associação Médica Americana, testou uma associação há muito comentada, mas pouco testada: aquela entre contraceptivos hormonais e depressão.
Afinal, se algumas mulheres se queixam de oscilações de humor após uso do anticoncepcional no consultório, se a tensão pré-menstrual é caracterizada por oscilações de humor (e têm hormônios como gatilho), por que não estudar o impacto de contraceptivos hormonais na depressão, fenômeno que atinge duas vezes mais mulheres que homens? Cerca de 350 milhões de pessoas vivem com depressão no mundo e mulheres figuram entre as principais acometidas, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Apesar disso, poucos são os estudos que tentam entender o porquê dessa maior prevalência entre elas.
“Apesar de evidências da influência da contracepção hormonal no humor de algumas mulheres, a associação entre o uso da pílula e distúrbios do humor permanece pouco estudada”, pontuaram os autores da pesquisa do JAMA.
A pesquisa mostrou que há um risco aumentado para a depressão com o uso de hormônios para a prevenção da gravidez, mesmo entre os métodos mais modernos. O risco varia de 23% a 100%, a depender do método. O levantamento, no entanto, mostra uma relação – e não uma associação causal direta. E o que isso significa?
O estudo não prova que pílulas e métodos hormonais causam a depressão, mas verifica que o medicamento pode figurar como um fator de risco – mais ou menos quando dizemos que o consumo de gordura está associado à maior prevalência de doenças cardiovasculares, mas não que ela é única e exclusivamente o responsável por ela – e nem que essa é uma relação igual para a todo mundo.
No fim das contas, o que o estudo traz é uma relação relevante que precisa ser avaliada caso a caso – a depender do desejo de cada mulher e dos potenciais custos e benefícios da escolha.
Para analisarmos o levantamento, Saúde!Brasileiros entrevistou um dos autores do estudo, o dinamarquês Øjvind Lidegaard, professor da Universidade de Copenhague e chefe de Ginecologia e Obstetrícia de hospital vinculado à universidade.
Também entrevistamos Halana Faria, ginecologista em São Paulo e em Florianópolis e mestra pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Halana atua no Coletivo Feminista Sexualidade em Saúde, ONG que tem a atenção médica humanizada a mulheres como foco desde 1981 (confira entrevista completa com ela aqui). A reportagem tentou, por diversas vezes, um posicionamento da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) sobre os achados do estudo, mas não obteve retorno.
Halana classificou a evidência como ótima e mencionou a idoneidade e o tempo de análise da pesquisa como um fator importante para a relevância dos achados. “O artigo é excelente. Uma coorte com mais de um milhão de mulheres com seguimento de 13 anos, e sem conflitos de interesse na sua condução”, diz. “A evidência é de ótima qualidade. Além disso, é muito difícil vermos estudos sobre contracepção não sendo financiado por laboratórios farmacêuticos”, conclui.
De fato, o estudo é sério e significativo. Mais de 1.000.000 de mulheres foram acompanhadas por mais de uma década: de janeiro de 2000 a dezembro de 2013. Elas eram excluídas do estudo se tinham diagnóstico prévio de depressão ou de outro distúrbio psiquiátrico significativo, se já tomavam ou estavam tomando antidepressivos, se tiveram câncer, se passaram por tratamento para fertilidade ou se sofreram trombose.
O estudo também tinha um grupo-controle de mulheres que não faziam uso de pílulas anticoncepcionais. Resultado: aquelas que faziam uso de contraceptivos hormonais têm de 1.23 (23%) a 2 (100%) vezes mais chance de ter depressão que as não usuárias, a depender do método adotado.
O estudo fez o cálculo com por meio do risco relativo. Ele é calculado tendo como base o grupo-controle (não usuárias de métodos hormonais). É uma medida que extrai o risco de uma “população normal” da população estudada, com o objetivo de isolar o fator de risco. Por exemplo, suponhamos que estamos estudando o risco de infarto entre fumantes. Queremos saber o quanto o “cigarro” adiciona de risco para os indivíduos. Calculamos, então, primeiro o risco entre fumantes; depois, entre não fumantes e, por fim, dividimos um pelo outro. Se a chance de um fumante sofrer um infarto é de 20% e a de um não fumante é de 10%; então, o risco relativo de infarto associado ao cigarro é igual a 2. Fumantes têm duas vezes mais chance de infarto que não fumantes.
Assim, com o “cigarro” aqui sendo a pílula, o risco relativo encontrado foi:
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Pílulas orais – risco relativo aumentado de 23% (RR 1.23)
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Pílulas de progesterona – 34% (RR 1.34)
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Adesivo de norelgestromina – 100% (RR 2.0)
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Anel vaginal (etonogestrel) – 60% (RR 1.6)
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DIU hormonal de Levonogestrel – 40% (RR 1.4)
Os achados vão na direção do que já se sabe sobre a influência dos hormônios no humor. É senso comum tanto para a ciência, quanto para a população, que eles têm um papel importante nas oscilações que ocorrem na tensão pré-menstrual, por exemplo.
“O estrógeno melhora o humor da mulher, enquanto a progesterona faz exatamente o oposto. Essa é a razão pela qual algumas mulheres fica de mau humor antes da menstruação. Nesse período, os níveis de progesterona estão altos”, explica Øjvind Lidegaard, ao Saúde!Brasileiros.
A ginecologista Halana Faria diz que os resultados são consistentes com o que se percebe na prática clínica e no consultório. “Essas evidências corroboram, inclusive, a sensação de muitas mulheres que descrevem ficarem ‘fora de si’, chorosas, apáticas, sem energia, com perda de libido.”
Ela diz que muitas mulheres têm se queixado de perda de libido e alterações emocionais. Mais atualmente, relata a médica, um grande número delas andam preocupadas com os relatos de efeitos colaterais graves que tem vindo à tona através de reportagens e de redes sociais, como a trombose.
Um outro achado a pesquisa é o fato de mulheres mais jovens serem mais sensíveis à pílula que mulheres mais velhas. Lidegaard explica que, embora o risco aumentado tenha sido encontrado em todas as faixas etárias, a sensibilidade à pílula cai depois dos 20 anos.
Isso vale para todas as pílulas?
Como mulher e antiga usuária de pílula, perguntei a Lidegaard sobre uma fala comum dos ginecologistas, que ouvi em consultório pelo menos umas três vezes quando fiz questionamentos sobre estudos que li: “Isso não se aplica a esse remédio que eu vou te passar, que pertence a uma classe mais moderna.”
Eis o que o autor do estudo me respondeu sobre isso:
“Em alguns aspectos isso é verdade, se for considerado o risco de trombose arterial [entupimento de artérias; no cérebro, é o chamado AVC; no coração, pode levar ao infarto].”
“Mas se considerada a trombose venosa [obstrução de vasos sanguíneos; que, em casos graves, pode levar à embolia pulmonar] e a depressão, os novos medicamentos não são mais seguros. Porque as progestinas [progesteronas artificiais] são até mais suscetíveis de levar a esse tipo de trombose que substâncias mais antigas.”
“No caso da depressão, os níveis de estrógeno foram diminuídos e a progestina é dominante no efeito da contracepção.”
Um estudo de mais de uma década de acompanhamento
A pesquisa é dinamarquesa e os dados foram extraídos de dois bancos de dados públicos na Dinamarca: o Registro Nacional de Prescrição e o Centro de Pesquisa Psiquiátrica. Esses dois bancos de dados foram utilizados para associar pacientes que passaram a tomar antidepressivos e que foram diagnosticadas com depressão no período.
Ao todo, 1.061.997 mulheres foram analisadas, com uma idade média de 24 anos. Durante a análise, eles identificaram que 55.5% das mulheres faziam uso do contraceptivo hormonal. Dessas, um total de 133.178 passaram a tomar antidepressivos pela primeira vez após o uso. Também 23.077 foram diagnosticadas com depressão clínica pela primeira vez.
O desenho do estudo é típico de pesquisas do tipo “coorte”. Nessas pesquisas, em um primeiro momento, os cientistas separam um grupo que não representa o resultado esperado (nesse caso, um milhão de mulheres foram selecionadas de forma aleatória, sem necessariamente tomarem antidepressivos ou tomarem pílula).
Desse grupo, seleciona-se quais representam os fatores de risco a serem analisados (no caso, as que tomam pílula: 55,5%). Depois, elas são seguidas por um período de tempo e verifica-se se elas apresentam o resultado analisado: no caso, a depressão ou o uso de antidepressivos.
Esse tipo de estudo é comum na pesquisa biomédica, já que, a partir dele, a relação de uma doença com fatores de risco é monitorada. Eles apontam para associações que devem ser melhor consideradas: não é, no entanto, uma causalidade direta, mas uma relação. A causalidade (ou seja, a prova cabal de que o antidepressivo eleva o risco da depressão) é difícil de conseguir nesses casos e mais estudos teriam que ser necessários. O estudo foi inteiramente financiado pela Universidade de Copenhagen, na Dinamarca e pela Fundação Lundbeck.
Hormônios são sempre ruins?
A pesquisa traz à tona um fator importante que deve ser considerado por médico e paciente na escolha do método contraceptivo, mas isso não significa que os hormônios devam ser “demonizados”.
“Muitas mulheres vão se beneficiar de métodos hormonais. Mulheres trans, mulheres portadoras de endometriose ou que não podem menstruar por problemas hematológicos, mulheres que querem usar pílula depois de informadas sobre seus riscos”, diz Halana.
O papel dos médicos
O autor do estudo aponta que médicos não podem mais desprezar essa relação – que deve ser considerada na hora da escolha do contraceptivo. “Médicos devem perguntar se mulheres têm depressão atualmente ou se já tiveram. Em caso afirmativo, o melhor é procurar por uma boa alternativa à contracepção hormonal. Eles também devem informar a todas as mulheres que a escolha pode levar à depressão.”
Halana também acrescenta que a escolha de um método contraceptivo é uma oportunidade para que médico e paciente formem uma parceria em busca de um maior conhecimento do corpo. “Gosto de colocar na mesa todas as opções e discutir uma a uma. Não há método ideal. Mas sim o método bom para cada mulher… é uma oportunidade para discutir sexualidade, o conhecimento do próprio corpo, as necessidades individuais de cada mulher.”
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