Cores corrosivas sob a “pele” de uma pintura geométrica

"Peixes", Gonçalo Ivo. Foto: Divulgação
“Peixes”, Gonçalo Ivo. Foto: Divulgação

A pintura é como a maré, se movimenta em um ir e vir em todos os períodos da história da arte. Há os sobreviventes, os quais um dia o sistema de arte tentou afogar na onda das esculturas minimalistas, das instalações, intervenções urbanas, performances. Um dos protagonistas desta insistência é o pintor carioca Gonçalo Ivo, que um dia deixou o Brasil para se fixar em Paris, onde experimenta experiências sintéticas de um geometrismo abstrato, cheio de porosidade e matéria. O título da mostra A Pele da Pintura, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, dado pelo curador Felipe Scovino, é perfeito. O conjunto de obras exposto dá a pista para a descoberta de que tipo de superfície encobre a materialidade densa da obra de Ivo. A utilização de formas geométricas imediatamente conduz o observador para uma percepção ligada ao abstracionismo e, na sequência, o conduz ao prazer das cores que se espraiam em densidades múltiplas sobre as “peles”.

Assim como na arquitetura, design, moda, cada objeto tem uma “pele”, impermeável ou porosa, lisa ou rugosa, grossa ou fina, plana ou com relevo. A pintura de Ivo é como uma cobra que constantemente troca as “peles”, todas coloridas e que se manifestam entre certa rigidez formal e uma alegria espontânea, especialmente nas telas sob a influência dos tecidos geométricos africanos. Este procedimento antropofágico de se abrir para outras épocas é uma das características de alguns artistas que se fixam em Paris, desde os modernistas. Ivo se deixou influenciar pela arte africana, da qual é colecionador, e várias estruturas geométricas dos tecidos tribais afloram em sua pintura, enquanto nas suas peças tridimensionais pulsam signos e símbolos característicos da cultura africana. A rigor, Ivo bebeu em várias fontes, como ele mesmo diz, desde a Idade Média. Suas influências diretas são os amigos de seu pai, o poeta Lêdo Ivo, também colecionador, cuja casa frequentavam Maria Leontina, Iberê Camargo, Lygia Clark, entre outros artistas.

Em algumas telas, o rigor das formas é equilibrado pela fusão colorística ligada à música, uma das paixões de Ivo. Ao iniciar aulas de piano fez surgir nas pinturas uma referência à pauta musical, numa relação harmoniosa entre a música, a forma e a cor. Como pintor, Ivo se envolve com a fabricação da tinta a óleo que utiliza, um procedimento antigo, próprio de quem tem a alma tingida pela cor. Como fazia Volpi, ele também usa a têmpera feita com ovo, mas a aplica com muitas camadas, tecnicamente diferente de Volpi que a usava de maneira translúcida em camadas finas e sutis. Com isso, Ivo não pode utilizá-la no Brasil, por causa da formação de fungos. Em suas últimas telas emerge uma pintura suave, na qual a cor corrosiva praticamente desaparece para dar lugar a tons rebaixados, translúcidos que tomam conta da tela, revelando um outro lado da pintura de Ivo que nesta exposição tem participação discreta, somente em três telas.

Com curadoria de Scovino, a exposição que abrange 118 obras, entre 32 pinturas, 42 aquarelas e 44 objetos, percorre a trajetória do artista nas duas últimas décadas. No conjunto, a mostra revela que a arte de Ivo é gesto ao qual se juntam as cores necessárias para sua potência. Algumas telas têm a ideia de volume obtido da trama de material arenoso que recebe coloração a priori, e é aplicada à tela em um estilo que tangencia Pollock, recebendo uma preparação especial para salientar as grossas camadas de tintas lançadas sobre a tela e que dão ao espectador uma percepção diferente dos demais quadros. O envolvimento sucessivo das “pinceladas” revela a qualidade do próprio material empregado pelo artista. Gonçalo Ivo é pintor, mas acima de tudo um dedicado pesquisador da matéria que dá vida à pele de sua pintura.


 
Serviço – Gonçalo Ivo: A Pele da Pintura
Até 26 de fevereiro de 2017   
Museu Oscar Niemeyer
Rua Marechal Hermes, 999, Curitiba


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