Muitos podem achar exagerado o que vou dizer: alunas da USP passam por situações similares aos episódios de violência doméstica. Mas não é. O nível de instrução não blinda as mulheres da violência. As pessoas não mudam apenas por entrarem na USP – e se a universidade quiser, de fato, exercer uma mudança cultural, ela terá que enfrentar suas contradições e ser ela mesmo um exemplo para os seus alunos. Por isso, a desigualdade de gênero e situações de violência precisam ser discutidas – e, aos poucos, elas estão saindo do silenciamento. Prova disso é o evento inédito “10 anos de Lei Maria da Penha: Avanços e Desafios na USP”, organizado pelo USPMulheres e realizado no dia 18 de agosto de 2016. É a primeira iniciativa oficial, com aval da reitoria, para uma discussão explícita da violência contra a mulher dentro da USP.
O USPMulheres é um escritório criado em junho de 2015 na Universidade de São Paulo e integra o movimento da Organização das Nações Unidas “ElesPorElas” [HeForShe]. A USP foi a universidade latino-americana escolhida para participar da campanha. A universidade, assim, deve ter um papel ativo na promoção da igualdade de gênero e exercer influência sobre as demais instituições. São muitos, no entanto, os desafios até lá.
Desde a aluna de graduação até a pós-graduação, são diversas as circunstâncias que indicam negligência, opressão e situações em que a assimetria de poder é evidente. Explicito aqui o paralelo que fiz inicialmente com a violência doméstica. Muitas mulheres, por manterem uma relação de dependência econômica com o seu agressor, silenciam abusos. Na universidade, essa situação é expressa na relação professor-aluna. Se a agressão é perpetrada por um professor, a aluna fica em situação de vulnerabilidade e, como também mantém uma relação de dependência, pode igualmente silenciar. Na graduação, dependemos do professor para corrigir as provas, tirar dúvidas em aula, elaborar projeto de iniciação científica. Na pós-graduação, a dependência é ainda maior. É o orientador que efetua a matricula semestralmente em cada uma das disciplinas que queremos cursar. Também dependemos dele para elaborar e executar o projeto de pesquisa. E, por fim, há dependência econômica: é o professor que assina os pedidos de bolsa de pesquisa para o mestrado e doutorado.
A USP deve ter um papel ativo e criar um canal direto para denúncias. E está tentando fazer isso. Ano passado, a universidade passou a estimular a criação de Núcleos de Direitos Humanos em todas as unidades para lidar com questões como essa. Ainda, não oficialmente, há a Rede Não Cala!, um coletivo autônomo formado por mais de 250 professoras da universidade, que tem como objetivo combater a violência de gênero no ambiente universitário, tanto pela participação ativa no recebimento de denúncias e nas comissões de julgamento de casos, como execução de ações preventivas. Dentre elas, destacam-se as rodas de conversa promovidas nas diversas unidades a fim de abrir um debate sobre o tema e treinamento de funcionários que lidam diretamente com alunas vítimas. A expectativa é que esses núcleos, ao lado de outras iniciativas, sejam capazes de prestar a devida assistência para essas mulheres.
Superação da cultura misógina e Lei Maria da Penha na USP
“#MeuQueridoPolitécnico me ofereceu uma carona pra poli e na hora de descer do carro ele disse que eu poderia pagar com sexo”. Esse foi um dos depoimentos publicados na página Politécnicas Reexistem. Demonstra a cultura misógina dentre os futuros engenheiros formados na Faculdade Politécnica, onde apenas 20% do corpo discente é composto por mulheres. Não é um caso isolado e a rede DeFEMde (Rede Feminista de Juristas), presente no evento, verbalizou isso de maneira muito apropriada. Segundo a rede, os altos índices de violência contra a mulher na sociedade como um todo acontecem porque a mulher é vista muito mais como propriedade do homem do que como proprietária do próprio corpo, algo que precisa ser desconstruído dentro e fora das universidades.
Dentro esse contexto, desafio ainda maior, no entanto, são as denúncias de violência dentro do Conjunto Residencial da USP (Crusp). Não me encontro na posição de detalhar o que acontece lá dentro –não sou moradora – mas, a contar pelas denúncias (que, como sabemos, nunca representam a totalidade dos fatos), são muitas as contradições e opressões que ocorrem nas residências. Isso já começa pelo déficit de vagas que cria uma situação cruel: os moradores ilegais. A partir deles, um outro tipo de assimetria de poder ocorre dentro do Crusp. Se quem sofreu a violência é uma moradora ilegal, o agressor se utiliza dessa posição “não legítima” para destrinchar ameaças e a própria vítima acaba por silenciar abusos.
Fora isso, há as denúncias “oficiais” negligenciadas. Pelo descaso, alunas do Crusp chegaram a ocupar a Superintendência de Assistência Social (SAS) em abril deste ano e requereram a formação de uma comissão para apurar agressões feitas. Ainda, há a difícil situação das mães do Crusp: a residência possui 12 vagas oficiais para elas, mas há 72 mães lá dentro. Há também falta de vagas nas creches e alunas carregam seus filhos para as aulas. Além disso, elas enfrentam diariamente o medo de estupros e violência física dentro de sua própria casa, medo estendido às demais moradoras.
A violência sofrida também por professoras
Embora ocupem posição privilegiada, as professoras não ficam imunes do reflexo da sociedade patriarcal na universidade, haja visto o predomínio de figuras masculinas nas cadeiras de professores titulares, diretorias e conselhos universitários. De fato, a professora Eva Blay, fundadora da primeira Delegacia de Defesa da Mulher no Brasil e coordenadora do USPMulheres, diz que após alcançar o grau de titular, levou 16 anos para que o mesmo título fosse conferido a outra mulher da unidade. Ela ainda ressalta os esforços do USPMulheres junto ao reitor para a adoção de medidas em favor da comunidade uspiana, incluindo defesa dos diretos de transexuais e transgêneros.
A professora Bete Franco, da Rede Não Cala!, reitera que nem o silêncio e nem a impunidade devem ser admitidos na USP. Segundo ela, a universidade deve proporcionar um ambiente acolhedor e seguro a sua comunidade e, além disso, promover uma mudança de desnaturalização da violência dentro e fora de seus muros. Afinal, a USP é um espaço educador. Assumindo uma postura otimista, ela destaca os avanços obtidos através da luta de movimentos feministas anteriores e convida toda comunidade da USP para participar da elaboração de um centro de enfrentamento a violência dentro da USP.
O que precisa ser feito?
Um dos aspectos que não pode ser negligenciado pela universidade é a punição e a apuração de denúncias, bem como maior atenção à representatividade e visibilidade a grupos com necessidades específicas dentro da USP.
É consenso entre Jaqueline Valadares da Silva, delegada da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher, Fabiana Dal’Rocha Paes, promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo e Tatiane Moreira Lima, juíza da Vara de Violência Doméstica do Fórum do Butantã (zona oeste de São Paulo, que estiveram presentes no evento, que a Lei Maria da Penha aplica-se a casos ocorridos dentro das moradias estudantis e a qualquer violência cometida por parceiro afetivo, parente ou qualquer homem que coabita com a vítima.
As especialistas também abordam a necessidade de medidas preventivas e não apenas punitivas, uma vez que o homem agressor é a exceção dentro da sociedade. Nesse cenário, a militante Maria José Menezes, membro do Núcleo de Consciência Negra e funcionária da USP, questiona a falta de eficiência da Lei Maria da Penha para as mulheres negras, uma vez que houve um aumento significativo nas taxas de feminicídio negro, enquanto o número de homicídios de mulheres brancas diminuiu. Ela finaliza pontuando a necessidade da USP abrir-se ao diálogo com a comunidade negra e com as funcionárias, a fim de entender suas especificidades. Alunas apontam outras minorias que merecem atenção, como as mulheres lésbicas e indígenas, e pedem que disciplinas sobre gênero sejam obrigatórias em todos os cursos da USP.
No evento, a Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres na cidade de São Paulo e a Rede Oeste de enfrentamento a violência contra a mulher mostraram os serviços disponíveis na região, como assistência jurídica e psicológica gratuitas para a mulher vítima de violência. Eles podem ser consultados aqui. Também, segundo Gabriela Schmidt, aluna de Ciências Sociais e representante do DCE (Diretório Central dos Estudantes da USP), é urgente a atualização do regimento da universidade, que ainda não prevê punições para violência de gênero.
*Ketrin Cristina da Silva é doutora pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo. Ela também fez mestrado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP e se prepara para o pós-doutorado na mesma instituição
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