A goiana Maria Vitória Ataídes, 18 anos, vive em Rio Verde, a 200 quilômetros da capital do estado. Faltando duas semanas para completar o quinto mês de gestação, ela precisou ir ao pronto-socorro por causa de fortes dores de cabeça, daquelas que fazem pesar os olhos e obrigam a pessoa a se isolar em um quarto escuro. Também tinha febre, dores no corpo e uma coceira esquisita na mão. Os plantonistas suspeitaram de dengue, mas o exame deu negativo. Em alguns dias, os sintomas desapareceram e a vida parecia tranquila, uma paz que só durou até o ultrassom de rotina mostrar uma anomalia no feto. O menino, a quem ela chamaria Luís, tinha a cabeça menor do que o esperado.
Na consulta, o especialista tentou tranquilizá-la dizendo que o pequeno poderia ter “puxado” alguém da família. A ilusão se desfez logo depois do parto, em setembro último, quando veio o diagnóstico de microcefalia, uma malformação que corresponde à medida da circunferência da cabeça abaixo dos 32 centímetros que são considerados normais. Ainda na maternidade, uma médica recomendou que o a criança fosse levada a um neuropediatra em Goiânia.
Desempregada, ela saiu vendendo rifas a parentes e amigos para levantar os R$ 400 da consulta e o dinheiro da passagem para a capital. “Quando o médico viu que nenhum teste deu positivo para as causas mais comuns de microcefalia, desconfiou de zika.” Até então, a jovem nunca tinha ouvido falar no vírus.
Feita a notificação obrigatória do caso, uma agente de vigilância epidemiológica de Rio Verde esteve na casa onde Maria Vitória vive com a avó e o filho. O pai da criança foi embora logo que o menino nasceu – aliás, um comportamento que vem se repetindo entre casais cujos filhos apresentam o problema. “A agente fez muitas perguntas e disse que conseguiria um especialista no SUS. Esperei sentada”, desabafa Maria Vitória. Decidida a dar o tratamento certo ao filho, hoje com 6 meses de vida, ela começou uma campanha no Facebook para arrecadar fundos.
Nos posts pedindo ajuda, Maria Vitória denunciou os obstáculos enfrentados para conseguir atendimento público. “Foi então que veio um vereador aqui em casa. Uma semana depois, comecei o tratamento do meu filho pelo SUS.” O bebê, finalmente, teve acesso ao time multidisciplinar de que precisava: oftalmologista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, otorrinolaringologista, neurologista e o pediatra, todos visitados regularmente. Luís também toma remédios para evitar convulsões.
Mesmo com todas as dificuldades, Maria Vitória acalenta a esperança de que o filho consiga progredir. “O neuropediatra foi superpessimista. Disse que o Luís tem um atraso motor grande. Mas a fisioterapeuta falou que meu filho está se desenvolvendo bem para uma criança com esse diagnóstico. É o que importa, né? ”
Os problemas dessa mãe ajudam a ter ideia do drama das famílias e crianças vitimadas por malformações neurológicas. Vale dizer que nem toda microcefalia é provocada por zika. Pode ser consequência de infecções como rubeola ou sífilis, entre outras doenças, durante a gestação. Quando está associada ao zika, a microcefalia tem se mostrado mais grave e aparece aliada a outras alterações, como lesões no interior do cérebro.
Desde o ano passado, quando começou a epidemia por zika, o geneticista e especialista em medicina fetal Thomaz Gollop, professor da Universidade de São Paulo, chama a atenção para o fato de que o conjunto de alterações vistas em fetos possivelmente expostos ao zika não cabe sob o rótulo de microcefalia. “O correto é chamar de síndrome congênita por zika porque envolve diversas alterações além da microcefalia.” Para ele, essa simplificação prejudica a compreensão da gravidade da doença.
De acordo com os dados oficiais, até 20 de fevereiro havia 583 casos confirmados de microcefalia e alterações neurológicas em associação com o zika. O epicentro da tragédia está entre Pernambuco, Paraíba e Bahia. No País, houve 5.640 notificações de microcefalia desde o ano passado. Dessas, 4.107 estão em investigação para que se saiba se há ligação com o zika.
Na prática, a dimensão real do problema ainda está longe de ser conhecida. Um dos grandes entraves diz respeito à forma como estão sendo registrados os casos de microcefalia, todos agrupados na mesma cesta, ainda que a alteração tenha diversas causas, muitas das quais nada tem a ver com o zika. Além disso, a confirmação da presença do zika é complexa e a epidemia ainda não atingiu seu ponto máximo, o que ocorre entre março e abril. Nesses meses, as chuvas abundantes e o calor aumentam exponencialmente a infestação do Aedes, o mosquito transmissor de três males – dengue, zika e chicungunya.
“Estamos vivendo um dos momentos mais dramáticos da saúde pública brasileira”, diz o infectologista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses. “O País sofre três epidemias ao mesmo tempo transmitidas pelo mesmo mosquito. Uma delas pode causar malformação fetal, o que é uma situação inusitada na história da medicina.”
Dengue light?
No ano passado, durante os intervalos no atendimento em hospitais, os médicos falavam de um tipo de dengue que não era identificado pelos exames de sangue. “Os pacientes voltavam para casa com medicação, mas nenhuma vigilância ou notificação era feita”, diz a médica sanitarista Lia Giraldo, pesquisadora da Fiocruz de Pernambuco. Ela acredita que o vírus zika pode estar circulando há mais tempo no País, mas sua descoberta só se deu pela tenacidade de médicos que tomaram a liderança e procederam a investigação dos casos, um trabalho que caberia aos serviços de vigilância epidemiológica. Dois deles são o infectologista Antonio Carlos Bandera e a ginecologista Adriana Melo. Em momentos e estados diferentes, ambos fizeram a diferença na história dessa epidemia.
No início de 2015, em Camaçari, na Bahia, Bandera percebeu que muitas pessoas apresentavam sintomas causados por um agente não identificado pelos testes. Pensou, a princípio, que era uma contaminação pela água, pois havia prédios onde a maioria dos moradores se queixava de mal-estar. Preocupado, procurou o virologista Gúbio Soares, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que levantou a hipótese da transmissão de algum arbovírus, da mesma família da dengue e da febre amarela, de amplo contágio. Ele então reuniu 20 amostras de sangue de pacientes com a febre e levou à UFBA. Após análise, Soares e Bandera chegaram à conclusão de que se tratava do vírus zika, que fora responsável por um surto na Micronésia, região do Oceano Pacífico, em 2007. O infectologista Kléber Luz, de Pernambuco, e Artur Timerrman, de São Paulo, pensavam da mesma forma sobre casos que fugiam ao padrão.
Meses depois, a 833 quilômetros de distância de Bandera, a ginecologista Adriana Melo, de Campina Grande, na Paraíba, também sentiu que havia algo errado por causa de um aumento nos casos de uma microcefalia mais agressiva do que o normal. Como o colega, trocou impressões com outros médicos e decidiu então mandar amostras do líquido amniótico, que envolve o feto, de algumas de suas pacientes para o Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A seu pedido, o governo da Paraíba enviou duas gestantes a São Paulo para exames que atestaram graves lesões no cérebro dos bebês e a presença do vírus zika nas amostras. A doença podia evoluir assintomática inclusive entre as grávidas, o grupo mais prejudicado.
Concomitantemente aos achados de Bandera e Adriana, começaram a aparecer mais casos da síndrome de Guillain-Barré, que causa fraqueza muscular, pode levar à paralisia e, se chegar aos músculos respiratórios, ser letal. Diferentemente da relação do zika com a microcefalia, jamais vista, a combinação entre a síndrome de Guillain-Barré e o zika fora descrita em 2014 no surto da Polinésia Francesa, onde houve o registro de 38 casos.
Encrenca
Sim, o zika é algo inédito. E trouxe grandes desafios aos cientistas, médicos e autoridades sanitárias. Um deles é a urgência de desenvolver um teste mais rápido, mais preciso e mais barato. Atualmente, há o exame PCR (em inglês, Polimerase Chain Reaction), que amplifica a quantidade de material genético encontrado na amostra de sangue, urina ou líquido amniótico para identificar sua origem. Mas esse método só funciona durante a fase ativa da infecção, que dura entre quatro e cinco dias. Depois, o caminho possível é submeter uma nova amostra de sangue a um teste de sorologia, que detecta anticorpos produzidos para lutar contra o vírus. Mais uma vez, porém, o teste só funciona durante um período de cerca de seis dias após a fase ativa. “Passado esse prazo, os testes que temos não conseguem mais identificar os rastros do zika”, explica o virologista Celso Granato, chefe do serviço de infectologia da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Fleury Medicina Diagnóstica.
A sorologia tem mais limitações. Os anticorpos por ela detectados protegem o corpo tanto do zika como da dengue e da febre amarela. “Os vírus que causam essas doenças têm partes iguais, que são combatidas por anticorpos com semelhanças entre si”, explica Granato. Sendo assim, o mesmo resultado positivo indica a presença de zika ou dengue, por exemplo.
Por tudo isso, muitos laboratórios e centros de pesquisa se empenham em refinar os exames. Granato, por exemplo, desenvolveu na rede privada um teste molecular (o PCR) mais sensível, que flagra o vírus em quantidades menores do que o habitual. Ele diz que as informações sobre o novo teste estão disponíveis para pesquisadores da rede pública. “Ninguém ainda nos procurou, mas é fundamental os cientistas compartilharem dados para aprimorarmos os testes mais rapidamente.”
Obter testes mais eficazes é um dos principais objetivos da Rede Zika da Fapesp, coordenada pelo virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Composta por mais de 40 grupos e com a colaboração da fundação francesa Instituto Pasteur, que enviou pesquisadores, a rede testará duas proteínas virais capazes de despertar respostas do nosso sistema imunológico. “Se funcionar bem, poderemos ter um teste rápido para zika”, afirma Zanotto. No início de março, os laboratórios oficiais da Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco aderiram a essa corrida. Eles se uniram para desenvolver um kit nacional de diagnóstico rápido para atestar se a pessoa já foi infectada pelos vírus da dengue, zika e chikungunya e se tem anticorpos específicos contra cada um deles.
Discordâncias
Outro aspecto que tira o sono dos cientistas é a necessidade de começar logo o acompanhamento das gestantes para monitorar as que tiverem zika. Diversos grupos estão organizando esses estudos em São Paulo, Ribeirão Preto e Jundiaí, entre outros locais. A partir dessa pesquisa será possível provar, estatisticamente, a correlação entre o vírus zika e as malformações. “Não podemos esperar mais. A gente sabe que o zika está chegando a São Paulo e os casos começam a aparecer”, diz Zanotto.
Na verdade, o número de casos de microcefalia e alterações neurológicas possivelmente associados ao vírus em São Paulo são alvo de uma discordância metodológica entre o Ministério da Saúde e a Secretaria de Saúde do Estado. Apesar de a orientação federal determinar a comunicação de qualquer caso suspeito, São Paulo decidiu informar apenas aqueles que tivessem confirmada a presença do vírus zika. Por isso, nenhum dos 18 casos em investigação no Instituto Adolpho Lutz aparecem nas estatísticas federais.
Em fevereiro, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, o infectologista David Uip, secretário de Saúde do Estado de São Paulo, justificou sua opção. Ele disse que parte do aumento dos casos de microcefalia no País poderia estar relacionada ao esforço de notificação. “Não tenho dúvida da correlação da microcefalia com o zika vírus, mas tenho que levar em conta a subnotificação que havia antes.”
Uma revisão feita pela Universidade Federal do Ceará apontou pelo menos 20 casos para cada mil bebês, bem acima dos dados oficiais. Para chegar a essa conclusão, os especialistas analisaram prontuários de 16.208 bebês nascidos na Paraíba entre 2012 e 2015. “É possível que a divulgação dos novos casos de microcefalia tenha conseguido reverter um cenário histórico de subnotificação”, diz Marcelo Firpo Porto, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e atual coordenador do Grupo Temático de Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
As vacinas
Mais um desafio é encontrar uma vacina, um projeto que envolve muitos grupos diferentes ao mesmo tempo, entre eles os institutos Butantan, em São Paulo, e Evandro Chagas, no Pará. Ambos terão colaboração internacional. O Butantan, por exemplo, está estreitando suas relações com o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, o NIH, que ajudará nos testes com voluntários. Já o Evandro Chagas acaba de enviar dois pesquisadores à Universidade do Texas Medical Medical Branch, nos Estados Unidos, para discutir protocolos de estudo. “Estamos apostando em uma agenda de seis a oito meses para obter a substância e mais seis meses para testes pré-clínicos em camundongos”, diz Pedro Vasconcelos, diretor da instituição.
Nos dois casos, a previsão conflita com declarações do ministro da Saúde, Marcelo Castro, de que se teria um imunizante em cerca de seis meses. “As pessoas querem uma resposta rápida, mas não faremos nada que desrespeite a progressão dos testes ou a ética”, disse Jorge Kalil, diretor do Butantan, à Brasileiros.
Várias tecnologias serão experimentadas na busca do imunizante: do uso de amostras de vírus inativados (mortos) a uma tática que aproveita partes do vírus da dengue, por exemplo, para serem preenchidas com material genético do zika. “Cada opção tem vantagens e desvantagens. Devemos perseguir simultaneamente todas”, disse à Brasileiros Pei-Yong Shi, professor de Genética Humana da Universidade do Texas e parceiro de pesquisa. O time de Shi descobriu uma nova maneira de desenvolver vacinas para vírus transmitidos por mosquitos, como o zika. Consiste em usar um vírus mutante, muito parecido com o causador da doença, mas sem o potencial de provocar infecções.
Por fim, o desafio mais amplo é compreender os vários aspectos da ligação entre o zika e as síndromes. “Os estudos indicam que há uma conexão entre a microcefalia e o vírus, mas a associação definitiva ainda precisa ser demonstrada experimentalmente”, diz Pei-Yong Shi. Muitos estudos seguem nessa direção.
Em janeiro, uma pesquisa da Fiocruz de Curitiba, no Paraná, mostrou a possibilidade de transmissão intrauterina do zika. Ao analisar as células de um feto abortado, os pesquisadores encontraram traços de material genético do vírus. Pouco depois, veio a notícia de dois casos de transmissão sexual nos Estados Unidos. Mais de uma dezena de casos está em estudo.
Outra descoberta foi feita pelo Instituto Aggeu Magalhães, de Pernambuco. No mês passado, a entidade divulgou análises de amostras de líquor (líquido que banha o cérebro, a medula e os olhos) de mais de mil crianças. Em dezessete delas que tinham alterações neurológicas e outros sintomas foi detectada a presença do vírus zika.
Mas ainda que haja um consenso sobre a conexão da infecção pelo zika e o aumento de casos graves de microcefalia, os especialistas insistem que é preciso continuar a investigação de outras circunstâncias relacionadas. “O Ministério cravou essa associação porque era necessário tomar uma atitude, mas pode ser que a microcefalia e o que está acontecendo no Nordeste tenha causas multifatoriais e não apenas o zika’, diz Lia Giraldo, da Fiocruz.
A possibilidade de existirem outros fatores de risco que permitam ao vírus danificar o cérebro dos bebês durante a gestação – o que causa as lesões neurológicas que se somam à microcefalia neste surto – está sendo investigada em Sergipe. O estado registra 192 casos de microcefalia, proporcionalmente a maior casuística do País. As análises feitas até agora, contudo, não confirmaram a presença do zika em nenhum caso. Isso mobilizou pesquisadores da Rede Zika da Fapesp a se unirem a equipes locais para rastrear os vírus que circulam na região e compreender como afetam a saúde das pessoas indivíduos. “Pode ser que daí venham dados cruciais para entender essa doença”, avalia o virologista Paolo Zanotto, que lidera o esforço.
O futuro
Trabalhos interessantes devem começar em breve para esclarecer, por exemplo, por que em gestações gemelares um dos bebês foi afetado pelo zika e outro, não. A hipótese a ser investigada no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo é a existência de aspectos da imunidade geneticamente determinados que possam causar proteção contra a ação do vírus.
E pode ser que a situação seja ainda mais complexa. Uma reportagem do programa Fantástico, da Rede Globo, em fevereiro, mostrou a preocupação de alguns hospitais com uma possível relação entre o aumento de número de casos, em adultos, de encefalite (inflamação do cérebro) e encefalomielite (inflamação do cérebro e da medula). No Hospital Universitário Antônio Pedro, ligado à Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, foram seis pacientes testados positivamente para zika que manifestaram uma dessas duas condições.
Diante do risco iminente de disseminação do vírus para outros países, o governo americano enviou pesquisadores do seu Centro de Controle de Doenças (CDC) para estudar a epidemia na Paraíba. Aliás, segundo um artigo de pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, publicado na prestigiada revista científica The Lancet em janeiro, o Brasil ajudou na introdução do vírus em 13 países das Américas. Foi na esteira dessa preocupação que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em fevereiro, estado de emergência global por zika e lançou um fundo com crédito de R$ 56 milhões para financiar pesquisas.
Na Paraíba, a equipe do CDC investiga se há fatores ambientais relacionados à doença. O Estado é o quarto no ranking de casos confirmados. São 56 infecções, segundo boletim de 11 de fevereiro. Além do número elevado, a Paraíba foi escolhida porque lá já havia um estudo sobre microcefalia em crianças na Rede de Cardiologia Pediátrica, hospital de referência no Estado. A pesquisa é conduzida pela médica Sandra Mattos. Agora, com a ajuda do CDC, a rede vai monitorar 150 crianças com microcefalia e outros 400 bebês e mães saudáveis. Os resultados devem sair em abril, segundo o governo do Estado.
A hipótese do CDC vai ao encontro dos questionamentos de um grupo da Fiocruz. “Por que a população do Nordeste foi tão afetada? Alguém se pergunta sobre as condições sociais daqui, sobre a imunidade dessa população, sobre outros fatores? Podemos estar diante de algo multifatorial”, diz a pesquisadora Sandra. Para ela, um dos fatores com chance de envolvimento nesse processo são os produtos químicos em uso para controle da infestação de mosquitos. Marcelo Porto, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pensa da mesma forma. “O uso de larvicidas tóxicos na água é um contrassenso sanitário e somos totalmente contra. Outra postura inaceitável é o uso do malation (inseticida considerado tóxico) na tática conhecida como fumacê”, diz Porto. Como os pesquisadores, a Abrasco também condenou, em nota, o uso de produtos químicos. O texto causou polêmica, especialmente no trecho referente ao larvicida pyriproxyfen, cujo uso foi suspenso pelo governo do Rio Grande do Sul. O Ministério da Saúde negou qualquer dano associado ao produto.
A questão do aborto
A epidemia de dengue, zika e chikungunya tem revelado, com nitidez perturbadora, as mazelas nacionais. Uma delas é a falta de uma coordenação central eficiente. Notificado em abril de 2015 por especialistas sobre a circulação do vírus zika, o Ministério da Saúde só voltou a falar do tema em outubro. Também se atrapalhou no momento de definir os critérios para a notificação dos casos de microcefalia. “De agosto a outubro, os critérios foram imprecisos e mudavam a todo momento. Começou com uma medida de 33 centímetros para o diâmetro cefálico. Depois, eram 32 centímetros e precisava excluir infecções como toxoplasmose, rubeola, citomegalovírus e herpes. Aí passou a ser necessário ter calcificações”, conta Artur Timermam, da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses.
Outra questão em aberto é a síndrome congênita por zika e o direito ao aborto. A opção pela interrupção da gravidez nesses casos foi defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em fevereiro. A entidade já recomenda aos países-membros a descriminalização da interrupção da gestação em casos de estupro, risco à saúde mental e física da mãe, incesto e fetos com doenças graves. No Brasil, só há descriminalização quando há risco de vida da gestante, em caso de gravidez decorrida de violência sexual e na situação específica de feto anencéfalo (sem cérebro), uma anomalia incompatível com a vida.
“A posição da ONU respeita a situação mínima em que o aborto deveria ser despenalizado, mas nem isso nós cumprimos no Brasil. O debate aqui precisa avançar”, defende Débora Diniz, antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Débora foi a idealizadora da ação no Supremo Tribunal Federal (STF), que tornou legal o aborto na anencefalia. Agora, vai recorrer novamente ao STF para despenalizar a prática do aborto nos casos em que a microcefalia ocorre em decorrência da infecção pelo vírus zika. “Pela urgência da epidemia, pediremos respostas rápidas, mas não há garantia quanto a isso.”
A ação solicita que mulheres infectadas pelo zika tenham direito ao aborto independentemente do diagnóstico do feto. Bastaria o teste laboratorial ou clínico da infecção. A defesa será fundamentada na necessidade de proteger o direito da mulher à informação sobre a epidemia do vírus zika e seus riscos à saúde, à dignidade e ao planejamento reprodutivo. A estratégia será recorrer ao entendimento de aborto sentimental, já utilizado na permissão para o estupro. “Nesta situação, o Estado reconhece que a mulher é vítima de uma violência e reconhece o seu direito de interromper a angústia e sofrimentos injustos. Argumentamos que com a infecção por zika seria o mesmo: a incerteza da epidemia é o que provoca o injusto sofrimento, ao qual nenhuma mulher pode ser submetida compulsoriamente.” Para além do debate sobre o aborto, trata-se de proteger a saúde de mulheres já desassistidas pelas políticas sociais e de saúde.
O geneticista Thomaz Gollop apoia a tese. “Despenalizar o aborto é uma questão de direito humano. As mulheres devem ter o direito de decidir se querem prosseguir com a gravidez de um bebê irremediavelmente acometido por severos danos neurológicos. É uma questão ética”, diz ele. “Poucos sabem que o Código Penal Brasileiro condena a mulher que pratica o aborto a prisão por um a três anos. É uma lei ineficaz, mas, em função da ilegalidade, a vida e a saúde delas correm riscos”, afima o geneticista, que reforça o dever dos médicos de informar corretamente as mulheres.
Em sua clínica de medicina fetal, ginecologia e obstetrícia, o médico instituiu uma rotina de exames para avaliar o risco de zika em todas as gestantes. Mensalmente, elas são submetidas a um ultassom morfológico (demora cerca de 40 minutos, contra os dez do exame normal), com especial atenção para sistema nervoso central e extremidades. Faz também testes sorológicos para dengue, chikungunya e zika.
A pauta de exames que acaba de ser instituída vai vigorar enquanto houver risco e, se depender da previsão do epidemiologista Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da USP, poderá se arrastar por muito tempo. Para ele, a “guerra ao mosquito” não será vitoriosa. Massad fala com a experiência de quem viveu na Ásia, região infestada pelo Aedes.
A questão de fundo é o modelo de urbanização. Segundo Marcelo Porto, da Fiocruz, na ânsia de promover políticas focadas no mosquito e no veneno, há enorme silêncio sobre as condições de vida e desigualdades sociais, o que faz as doenças afetarem duramente a população mais pobre. Além disso, favorece a adaptação do Aedes, “uma máquina biológica feita para se adaptar”, como diz Artur Timerman. Estudando o vetor, o infectologista conta que a fêmea está picando mais pessoas e, de uns tempos para cá, começou a voar à noite. “O Aedes tem sido visto em cidades como São Paulo ao redor de lâmpadas, o que não acontecia.” Ainda que seja necessário lutar em várias frentes, recorrendo a tecnologias como a irradiação do mosquito para esterilizar o macho, a estratégia para ganhar a guerra precisa contemplar o saneamento básico. O que se vê, no entanto, é o contrário. Para ter ideia, foram cortados 50% do orçamento para a política do saneamento básico e 70% para o rural.
E a Olimpíada?
O epidemiologista Eduardo Massad desenvolveu modelos matemáticos que inauguraram a possibilidade de projetar a gravidade da epidemia de dengue, caso o Aedes não fosse combatido com veemência. Infelizmente, as projeções assustadoras de Massad, de mais de um milhão de pessoas com a doença, se confirmaram. No ano passado, o Brasil teve mais de 1,5 milhão de casos de dengue.
Agora, o especialista tenta entender o fenômeno zika. Como faltam dados, recorreu a contas que permitem calcular as chances de ser picado pelo mosquito Aedes no Rio de Janeiro. “No Carnaval, o risco era de 99%”, conta. “Mas, na Olimpíada, cai para 3,5%, o que é baixo”, diz Massad. A diferença se justifica pela mudança de temperatura, mais fria em agosto, quando começam os jogos. Antes disso, porém, salve-se quem puder. Pelos cálculos do médico, o País alcançará aproximadamente 1,9 milhão de infectados. Por faltar dados, é ainda impossível calcular o número de grávidas potencialmente afetadas.
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