A alquimista

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Discreta, ela não faz alarde de suas conquistas. Mas é certo que Carolina Kotscho, paulistana de 38 anos, conseguiu sintetizar a pedra filosofal, sonhada há séculos pelos alquimistas. Por meio dela, segundo a literatura, seria possível não apenas transformar qualquer metal em ouro, mas também produzir o elixir da longa vida, espécie de energético mítico conhecido por tornar imortal quem o ingere. Corroteirista de 2 Filhos de Francisco, de 2005, Carolina transformou em ouro da crítica a história da controvertida dupla Zezé Di Camargo & Luciano. Também gravou seu nome na tábua dos imortais do cinema brasileiro. Com 5,3 milhões de espectadores, o filme registrou, na época, a maior bilheteria desde a retomada, batendo Carandiru, de Hector Babenco, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Só foi superado por Se eu Fosse Você 2, em 2009, e Tropa de Elite 2, em 2010. Dirigido por Breno Silveira, o longa conquistou a admiração de uma plateia jamais identificada com os sertanejos e ganhou o respeito de quem desprezava seus personagens.

Quase dez anos depois, Carolina retorna aos tubos de ensaio para repetir em Não Pare na Pista a consagração de outro personagem polêmico. Sócia da produtora Dama Filmes, ela produz e assina o roteiro da cinebiografia de Paulo Coelho, dirigida por Daniel Augusto, cartaz nacional neste mês de agosto. A comparação é inevitável. Embora reluza no Guinness, onde o livro O Alquimista desponta como recordista em número de traduções, e nos rankings das livrarias – apenas Dan Brown, de O Código Da Vinci, e J. K. Rowling, de Harry Potter, vendem mais do que ele no mundo –, Paulo Coelho é tratado como ouro de tolo pela maioria dos intelectuais e, como a dupla de Goiás, apanha da crítica mais do que Judas em sábado de Aleluia. No filme, no entanto, vira joia rara. Coerente, obstinado, batalhador, o garoto problemático que sonhava ser escritor e só conseguiu emplacar um romance aos 40 anos sai do longa melhor do que entrou.

O mérito, segundo Carolina, é todo de Paulo Coelho, um autor transparente, que coloca em seus livros exatamente o que é. “Ninguém faz sucesso por 20 anos enganando”, diz ela. Às vésperas de assistir ao filme pela primeira vez em um cinema, Carolina recebeu Brasileiros em sua produtora, no Jardim Paulista, e contou ter ficado surpresa com as muitas coincidências que conspiraram para que o filme desse certo. Bobagem dela. Deu certo porque tinha que dar. Estava escrito. É o que acontece quando dois magos se encontram.

O ENCONTRO
Conversei com Paulo Coelho pela primeira vez em meados de 2007. Foi uma enorme coincidência. O processo do filme, aliás, foi cheio de coincidências. É muito difícil continuar cética depois disso. Eu estava na sala do Roberto Viana, meu sócio no projeto Televisão América Latina (TAL), quando tocou o telefone. Era Paulo Coelho, que tinha assistido ao filme 2 Filhos de Francisco, dois anos depois do lançamento, e ligou para dizer que tinha ficado emocionado. Ele falou para o Roberto (diretor de um documentário sobre o escritor para o canal Discovery) que muitas pessoas já haviam procurado por ele com a proposta de contar sua história e sempre recusou, mas que, se um dia fizessem um filme sobre ele, gostaria que fosse como aquele. Roberto, então, disse: “Ah, você gostou? Vou passar o telefone para a pessoa certa”. Atendi, ouvi os elogios e propus: “Então, me deixa contar sua história”.

A DUPLA
Naquela época, quando me perguntavam do roteiro que eu estava escrevendo e dizia que era sobre Zezé Di Camargo & Luciano, ficavam todos constrangidos. Mas é uma história linda. Até a Zilu (mulher de Zezé Di Camargo na ocasião) contou recentemente, em uma entrevista, que o filme mudou a maneira como as pessoas olham para a dupla. Antes, eram aqueles caras que vendiam disco e ganhavam muito dinheiro fazendo uma música de gosto duvidoso. Mas, quando você conhece, vem o respeito. Gostando ou não da música, passaram a respeitá-los pela trajetória. E entenderam que o que eles cantam é verdade.

A REALIDADE
É a mesma verdade em relação a Paulo Coelho. O que ele diz nos livros, o que vende milhões de exemplares e o faz ter milhões de seguidores no Twitter é a história real de sua vida. Não é um jogo de marketing. Se você olhar, é a mesma mensagem que aparece em todos os livros e em todas as músicas que fez com o Raul Seixas. Quando causou polêmica ao dizer que Ulysses, de James Joyce, dava um tuíte (em 2012), eu disse para ele: “Sua obra inteira também dá um tuíte: ‘Tente outra vez’”. Ele concordou e até tuitou meu comentário. Os dois filmes têm isso em comum. Você pode não gostar do que eles fazem, mas, conhecendo a história, dá para entender de onde vem sua força. Ninguém faz sucesso por 20 anos enganando. Ninguém engana todo mundo por tanto tempo. O que me encanta é buscar entender de onde isso vem.

A DETERMINAÇÃO
Não tive, de jeito nenhum, a intenção de dignificar os personagens. E não acho que os filmes façam isso. Eles mostram um lado muito duro também. O que me move não é dignificar, é entender. Todo mundo nasce com uma gotinha de determinação, mas esses caras nasceram com um mar inteiro. Por isso Zezé Di Camargo e Luciano e Paulo Coelho têm muita coisa em comum. Vieram de realidades completamente diferentes, mas a determinação está lá. E conseguiram reescrever a própria história. Era para o Paulo Coelho ser engenheiro, como o pai queria. Zezé Di Camargo e Luciano deveriam trabalhar na enxada.

A literatura
Eu não era leitora de Paulo Coelho. Ele odeia quando alguém diz que o leu aos 15 anos, mas foi assim comigo. Minha mãe leu Diário de um Mago na época e me deu. Depois, não o acompanhei mais. Mas sempre achei Paulo uma figura interessante. Fui ler seus livros agora, para estudar. Ele é personagem de seus livros, faz ficção com a própria vida. As Valkírias, por exemplo, é uma viagem que ele fez com a sua mulher, Christina Oiticica, e os dois estão ali, bastante expostos.

As músicas
Nunca fui fã de Raul Seixas. Os primeiros discos que comprei foram agora, por causa do filme. Fui estudar as músicas e os livros. E foi um barato, porque está tudo lá, super transparente. Acho que é isso que faz Paulo Coelho ter tantos leitores e seguidores. Ele é coerente. E todo mundo tem necessidade dessa injeção de ânimo.

A relação
Fiquei quatro dias no apartamento dele e da Chris, em Genebra. Foi bem curioso. Primeiro, Paulo Coelho não ia falar comigo. Depois, ia falar por 15 minutos. Aí, resolveram que ele daria a entrevista no carro durante uma viagem. Fui encontrá-lo em Genebra e iria com ele e a Chris até Frankfurt, onde teriam um compromisso. Nem bem começou a viagem, caiu uma tempestade de neve, ficamos 14 horas no carro e tivemos de voltar a Genebra porque a estrada foi bloqueada. Chris me convidou para me hospedar com eles e fiquei quatro dias ali. Foi incrível. Foi quando o conheci de fato. Ninguém encena 24 horas por dia.

O obstáculo
Paulo Coelho foi bastante receptivo à ideia de fazermos o filme. Mas a agente Monica Antunes não gostou e cortou o projeto. Acabei indo a Barcelona para encontrá-la. Ela também não queria me receber. “Monica”, eu disse, “já entendi que você não quer o filme, mas preciso ir aí olhar no seu olho”. Ela reservou 15 minutos para mim e acabamos conversando por quatro horas. Até que ela terminou a conversa dizendo: “Você vai fazer o filme”.

Os sinais
O filme não tem efeitos especiais, desses que fazem o céu se abrir, porque Paulo não é um ser iluminado desse tipo. Mas ele interpreta sinais o tempo todo. Para ele, uma frase dita em um episódio de um seriado de TV pode ser um sinal. Se ele atravessa a rua e um gato pula de determinado jeito, é um sinal. Um evento qualquer, que consideraríamos prosaico, pode fazê-lo mudar a vida. Mas isso não faz dele uma pessoa com TOC, cheia de manias, rituais, estranhezas. Ele me parece uma pessoa normal, muito divertida, engraçada.

Filão de mercado?

Paulo Coelho me parece ser exatamente o que ele escreve. Quanto mais ele se expõe, mais as pessoas se identificam. Também diziam que Zezé Di Camargo & Luciano eram artistas moldados pelo mercado. Falam na fórmula do Oscar… Se tivesse fórmula, todo mundo fazia! Não é assim que funciona. Paulo estava desesperado nos anos 1980, tentando ser escritor havia anos. Foi fazer a viagem pelo Caminho de Santiago, achando extremamente ridículo sair em busca de uma espada aos 40 anos. Voltou, escreveu Diário de um Mago e, mesmo assim, não deu tão certo. Fez O Alquimista no ano seguinte, e o editor não quis publicar. Assim que levou um pé na bunda do editor, resolveu ir a uma noite de autógrafos e pediu para falar com Paulo Rocco. Acabou convencendo-o a publicar O Alquimista pela Rocco, e o livro foi um fenômeno. Ele já tinha ganhado muito dinheiro com as músicas, como roteirista da Globo e como executivo de gravadora. Mas não era o que queria da vida. Raul Seixas também tinha sido gerente de gravadora, andava de terno e gravata. Paulo diz que aprendeu muito vendo o lado comercial dos artistas, principalmente com Raul. Ele tinha uma coisa mais metida, intelectual, queria falar difícil. E Raul dizia que falar de um jeito simples era fundamental para chegar à alma das pessoas. Os livros de Paulo Coelho têm esse jeito simples.

O tempo
A primeira conversa entre mim e Paulo aconteceu em 2007. Levou um tempo para convencer a Monica. Em 2008, quando íamos começar, eu fiquei muito doente. Fui infectada por uma bactéria de carrapato e passei três meses internada. O médico infectologista David Uip chegou a dizer que não tinha mais o que fazer comigo. Quando me recuperei, foi o Paulo que ficou doente. A gente só conseguiu assinar o contrato no final de 2009, e fiz a primeira entrevista em fevereiro de 2010, quando fiquei quatro dias em Genebra. Depois disso, nos encontramos dez vezes, em oito países diferentes.

As interferências
Paulo não interferiu em nada. Depois da série de entre­vistas, fiz um primeiro tratamento do roteiro e enviei para ele por e-mail. Imaginava que começaria ali um longo processo de negociação, que levaria uns dois anos. Ele respondeu o e-mail com a palavra “maravilhoso”, escrita em letras maiúsculas. “Não mexa em nada para não estragar o que você fez”, dizia. Mexi pra caramba, é claro. Mas ele não quis mais ver. Só foi assistir ao filme pronto, no dia 18 de março deste ano, em companhia dos cem convidados que estavam em Cascais para a festa de São José (festa que Paulo Coelho promove todos os anos).

Quem é Paulo Coelho
É esse cara que não desiste. Sempre defini assim: vou contar a história de alguém que não desiste. Por isso o título Não Pare na Pista. Quando as coisas ficavam muito complicadas, eu pensava: “Me propus a contar a história de alguém que não desiste, não posso desistir agora”.

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA
Um adolescente arrasta uma poltrona até a cozinha. Fecha a porta e as janelas. Abre o gás. Agarra um terço e põe-se a recitar um Pai-Nosso. Corta. Uma maca transporta um senhor idoso inconsciente, de cavanhaque branco, pelo corredor de um hospital. O soro goteja na bolsa de plástico, calmamente. Corta. Na cozinha, o garoto interrompe a oração para tossir. Uma, duas vezes. Sua visão está confusa, a mente turva, o raciocínio em desalinho. “Eu quero morrer porque está tudo errado”, registrara no diário. “Deus devia me pedir desculpas por me fazer passar por aqui.” No instante que antecede o desmaio, pula da poltrona a tempo de fechar o gás, abrir as janelas e driblar a morte. Desiste de morrer.

A sequência inicial de Não Pare na Pista reconstrói, em um flashback vivido pelo velho e enfermo Paulo Coelho, uma das raríssimas ocasiões em que ele, na juventude, desistiu de algo. Ao fechar o gás e optar pela vida, confirmou seu compromisso de correr atrás do sonho de se tornar um escritor de sucesso. O itinerário percorrido pelo jovem obstinado até bater sua meta é a essência do primeiro longa dirigido por Daniel Augusto. Nele, o protagonista não é o autor recordista de vendas nem o imortal da Academia Brasileira de Letras, mas o Paulo anterior ao mito: o moleque problemático que soube transformar opressão em rebeldia e criatividade. A timidez, a feiúra, o pai repressor, os choques que levou em uma clínica psiquiátrica e os que voltou a tomar quando torturado por agentes do DOPS, toda sorte de porrada que a vida lhe deu eclodiria mais tarde, nas letras que compôs para músicas de Raul Seixas, nos anos 1970, e, a partir da década seguinte, nos livros impregnados de mensagens de fé e superação.

Coprodução Brasil-Espanha, com 20% da fita gravada no Caminho de Santiago, o longa tem direção de arte de Antxón Gómez, figura carimbada na filmografia de Pedro Almodóvar. Julio Andrade, conhecido por viver Gonzaguinha em Gonzaga: de Pai para Filho, interpreta Paulo Coelho dos 20 aos 65 anos. Para fazer o escritor sexagenário, submeteu-se a seis horas de maquiagem feita por uma equipe da DDT, produtora espanhola que assina os efeitos especiais de Harry Potter e Labirinto do Fauno. O elenco tem ainda Ravel Andrade, irmão de Julio, como o Paulo adolescente; Fabíula Nascimento e Enrique Díaz como seus pais; Fabiana Guglielmetti no papel de Christina Oiticica; Lucci Ferreira na pele de Raul Seixas; e a estonteante Paz Vega, diretamente da Espanha, como uma sensual namorada de Paulo Coelho no auge do desbunde.

O resultado é um filme coeso, ágil e dinâmico. É verdade que a trama, obra de ficção baseada em uma história real, ignora episódios questionáveis da vida do escritor, narrados por Fernando Morais na biografia O Mago, o que contribui para a beatificação do biografado. Apenas tangencia o episódio em que Paulo Coelho sacrificou animais em rituais satânicos, por exemplo. Passa ao largo de seus primeiros livros, sobre satanismo e vampirismo, e o apresenta como vítima de um Raul Seixas mesquinho e ególatra, sem lembrar em nenhum momento o mal que Paulo Coelho pode ter causado ao cantor por iniciá-lo no mundo das drogas. Nada disso atrapalha o produto, um registro à altura do personagem, que há muito merecia um longa como esse. (C.V.)


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