Adão à Mário Prata: “Corno, sim. Assassino de Abel, jamais!!!”

Adão e Eva. Lucas Cranach, o velho (1472-1553). Foto: Reprodução
Adão e Eva. Lucas Cranach, o velho (1472-1553). Foto: Reprodução

Há poucos meses escrevi uma crônica na Playboy: “Não foi Caim quem Matou Abel”. Desenvolvia um raciocínio simples – era preciso povoar a Terra (crescei e multiplicai-vos). Adão e Eva deveriam ter um filho macho e uma fêmea. Deu zebra. Caim e Abel começaram a ter relação com a própria mãe. Naquela época não existia pecado ao norte do Equador. Era preciso procriar. Adão não sabia de nada. Como Eva preferia Abel a Caim, este foi dedar a situação familiar para o chefe Adão. Adão teria matado Abel e, quando Deus apareceu, colocou a culpa em Caim, que fugiu para o lado oriental do Éden, segundo a Bíblia. E lá conheceu a sua mulher “e ela concebeu. E deu a luz a Enoque”. A Bíblia não explica de quem a mulher de Caim era filha. De Adão e Eva é que não era. E a Bíblia vai mais longe: diz que um tataraneto de Caim, de nome Lameque “tomou para si duas mulheres; o nome de uma era Ada, e o nome da outra, Zilá” (Gênesis 4:19). Lá no Oriente, a coisa estava rolando mais solta…

A crônica dizia mais ou menos isso. Me lembrei dela na hora que tocou o interfone, e o porteiro estava aflito:

– Seu Mario, tem um sujeito aqui muito estranho, querendo falar com o senhor. Diz que é o Adão… Sei não, seu Mario.

– Manda subir…

– Seu Mario, quer que eu acompanhe o elemento? Ele está de bermudão, e é muito esquisito. Grandão.

O Adão já havia ameaçado o pessoal da redação da Playboy, exigindo uma retratação. Queria dar uma longa entrevista para a revista. Acharam que era um louco qualquer e nem responderam aos vários e-mails. Veio atrás de mim.

Abri a porta. Sim, estava apenas de bermuda. Como é que eu vou descrever a figura? Recorro ao Eça de Queirós: “Era medonho. Um pelo crespo e luzidio cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando apenas em torno dos cotovelos, dos joelhos rudes, onde o couro aparecia curtido e da cor de cobre fosco. Do achatado, fugidio crânio, vincado de rugas, rompia uma guedelha rala e ruiva, tufando sobre as orelhas agudas. Entre as rombas queixadas, na fenda enorme dos beiços trombudos, estirados em focinho, as presas reluziam, afiadas rijamente para rasgar a febra e esmigalhar o osso. E sob as arcadas sombriamente fundas, que um felpo hirsuto orlava como um silvado orla o arco duma caverna, os olhos redondos, dum amarelo de âmbar, sem cessar se moviam, tremiam, esgazeados de inquietação e de espanto”.

Estendi a mão, ele sorriu e me cumprimentou com sua imensa mão peluda. Parecia uma lixa. Ele entrou, não olhou para nada, nenhum quadro. Sentou-se na primeira cadeira que viu. Tentei ser hospitaleiro.

Bebe alguma coisa?
Sua voz troou, mas não era agressiva.
Gosto de uísque, mas estou em jejum. Tem vinho tinto?

Momento.
Fui para a cozinha abrir um vinho para o Adão. Interfonei:

– Marcos, melhor você ficar aqui do lado de fora da porta. O cara vai beber…

– Eu avisei, seu Mario. Quer que eu ligue para o 190?

– Ainda não.

Voltei para a sala, ele estava na mesma posição, olhando para o chão. Eu com a garrafa e dois copos. Enquanto servia, perguntei:

Como conseguiu meu endereço?
Com Deus, é claro.

Mais essa. Deus sabe o meu endereço.
Ele pegou a taça, cheirou, balançou o líquido, deu um pequeno gole:
Português?

Sim.
Mostrei o rótulo.
Não sei ler.

É um Redondo, do Alentejo.
Estalou a língua. Deu outro gole e ficou em silêncio. Tive de puxar conversa:

E Deus, como vai?
Como sempre. Aposentado, né? Bom o vinho.

Em que posso ajudar o senhor?
Agora ele me olhou nos olhos.
O senhor me chamou de corno e assassino naquela revista.

O Senhor? Deus?
Não se faça de engraçadinho. Um tataraneto me leu. Ficamos todos muito tristes na nossa família. O senhor – você! – não tinha o direito de fazer uma coisa dessas. Eu queria que o senhor – você! – consertasse a merda que fez. Não se fala noutra coisa no Éden. Você é muito mal informado.

A Eva, com o perdão da palavra, não mantinha relações com o Caim e com o Abel?
Naquela época, viviam-se muitos mais anos do que hoje. Não tinha trânsito, nem nicotina e nem sogra. Eu já havia passado dos 300 anos quando ela começou a tentar procriar com eles. Eu sabia, estava ciente. Normal. Não tinha alternativa. Foi um erro divino. Nós deveríamos ter tido um casal. Deu uma caca qualquer e depois do Caim veio o Abel. Ou o Abel era o mais velho? Não lembro mais. Ando meio esquecido, me perdoe. E a Eva, apesar da idade, ainda estava inteiraça.

Me deixa ler para você como o Eça de Queirós descreveu o aparecimento dela: “A aurora despontou, com ardente pompa, comunicando à terra alegre, à terra braviamente alegre, à terra ainda sem andrajos, à terra ainda sem sepulturas, uma alegria superior, mais grave, religiosa e nupcial. Adão acordou: e, batendo as fuscas pálpebras, na surpresa do seu acordar humano, sentiu sobre a ilharga um peso macio e que era doce. Nesse terror que, desde as árvores, não desamparava o seu coração, pulou e com tão ruidoso pulo que, pela selva, os melros, os rouxinóis, as toutinegras, todos os passarinhos de festa e de amor, despertaram e romperam num canto de congratulações e de esperanças. E, oh maravilha!, diante de Adão, e como despegado dele, estava outro Ser a ele semelhante, mas mais esbelto, suavemente coberto dum pelo mais sedoso, que o contemplava com largos olhos lustrosos e líquidos. Uma coma (xoxota) ruiva, dum ruivo tostado, rolava, em espessas ondas, até às suas ancas arredondadas numa plenitude harmoniosa e fecunda. De entre os braços peludinhos, que cruzara, surgiam, abundantes e gordos, os dois peitos da cor do morango, com uma penugem crespa orlando o bico, que se enristava, intumescido. E roçando, num roçar lento, num roçar muito doce, os joelhos pelados, todo aquele sedoso e tenro Ser se ofertava com uma submissão pasmada e lasciva. Era Eva… Eras tu, Mãe Venerável!”.
Tirei os olhos do Eça e olhei para Adão. Ele chorava. A princípio lentamente, depois o choro veio forte, fazendo ruídos medonhos.

O Marcos abriu a porta.

– Telefonou, seu Mario?

E o seu Mario estava abraçado com o comovido Adão no meio da sala. Discretamente Marcos saiu e fechou a porta com carinho. Adão balbuciava:

Nunca vi ninguém descrever a Eva com tanta propriedade. Que coisa linda! Depois o senhor – você – lê novamente? Ou me empresta o livro para levar para os meus tataranetos?

Claro, claro.
Peguei uma toalha no lavabo para ele se enxugar. Foi pouco. Peguei uma de banho.

Mais vinho, por favor. Como se chama o homem?

Eça, Eça de Queirós. Português.

Que maravilha. E de mim, o que ele fala?

Fala nada, não.
Fechei o livro.
No começo eu não gostava dela. Falava demais.

Peguei outro livro.

Este é de um grande americano chamado Mark Twain. Escreveu um diário seu: “Depois de tantos anos vejo que me enganei a respeito de Eva. Reconheço hoje que é melhor viver fora do Éden com ela, do que no Éden sem a sua companhia. No começo achava que ela falava demais, mas agora ficaria triste se essa voz não soasse perto de mim, pois sem ela não haveria aprendido o sentido da vida”.

Ele ficou sorrindo o tempo todo.

É verdade, é verdade. Grande mulher. E tem mais uma coisa errada nessa história toda. A gente não foi expulso do paraíso porque fizemos sexo. Nada disso. Deus nos disse: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a Terra” (Gênesis 1:28). O fruto proibido era outra coisa.

E cochichou no meu ouvido o que era o fruto proibido. Me assustei:

É mesmo???
Sim, foi isso que emputeceu o Cara.

Quem diria…
Dizem que até hoje acham que é pecado.

É, mais ou menos.
Pausa, nos servimos de mais vinho.

Então não foi o senhor quem matou Abel? Foi o Caim mesmo?
Eu não disse isso. Disse apenas que não matei o meu filho mais novo. Ou seria o mais velho? Ando tão esquecido…

Ok. Está registrado.
Obrigado, pois soube que um tal de Joaquim Barbosa estava querendo me julgar… Por isso fui procurar o Senhor e o senhor. Você!

Fique tranquilo. Então, repito, quem foi que matou o Abel?
Suspeito que a própria serpente. Ela nunca se ajustou bem à nossa família. Tinha inveja dos seios da Eva, dos nossos pênis. Pênis tem plural? E quem acusou o Caim foi Deus, e não eu. Daí que ele se mandou. E eu ainda tive o Set com a Eva e depois nós três continuamos a nossa missão. Hoje, já somos mais de 120. E Caim ficou lá no oriente, procriando também. Ou seja, não sou assassino. Que isso fique bem claro na entrevista! Não tem um amendoinzinho, não? Estou começando a ficar de pilequinho. O senhor – você! – promete escrever tudo isso na Brasileiros? Deus lê a Brasileiros, sabia?

Vocês acreditam que o Adão está morando aqui em casa há duas semanas? E eu não consigo falar com Deus de jeito nenhum pra resolver esse impasse. O cara come 3 kg de picanha por dia, acabou com todos os meus vinhos alentejanos e está dando em cima da vizinha. Que é casada. Disse que só vai embora quando a revista estiver nas bancas, para ele poder levar umas para o Senhor e o tataranetinho.

Mas é boa gente. Ficou amigo até do porteiro. 


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