Antiturismo no deserto

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Foto: Divulgação

Todos os anos, durante uma semana, em julho, a imagem da Virgem do Carmo deixa a igrejinha do povoado de Tirana, com seus 800 habitantes no norte do Chile, e vai às ruas para ser homenageada por mais de 250 grupos que dançam dia e noite.

Vestidos com roupas um tanto pagãs, que chegam a lembrar as suntuosas fantasias do carnaval carioca, alguns grupos se inspiram em tradições incas, outros em vestimentas chinesas. Há também os índios, alguns como apaches, os “chunchos”, de tradição boliviana, e as “diabladas”, baseadas em homenagens a deuses nada católicos. Se o álcool não fosse proibido, seria uma grande farra. Afinal, mais de 300 mil pessoas passam por Tirana nessa semana.

“É uma festa que se atualiza todos os anos, não se trata de algo estático, mas uma composição de muitos textos sobrepostos”, explica o sociólogo Bernardo Guerrero, diretor da Fundação CREAR, em Iquique, a maior cidade do chamado Norte Grande, onde também se localiza Tirana.

Guerrero falou a um grupo de 35 artistas, curadores e acadêmicos que participaram do projeto Gestionar desde la Geografia – Nuevos Desplazamientos, organizado pelo curador chileno Rodolfo Andaur, em julho passado. Assim como a santa que se desloca do altar para ativar a cidade, o projeto de Andaur objetiva produzir conhecimento no deslocamento pela região do deserto do Tarapacá, o Norte Grande.

Contudo, trata-se de uma viagem antiturística, já que os locais visitados pelo grupo estão totalmente fora de qualquer guia tipo Lonely Planet: valas de cemitérios onde Pinochet despejou presos assassinados, hospitais abandonados, cidades-fantasmas, lixões.

A região de Tarapacá tem características muito particulares. Em um raio de dois mil quilômetros não há escolas de arte, tampouco galerias comerciais e museus de arte contemporânea. Essa foi uma região de muito dinheiro durante a exploração de salitre – um fertilizante poderoso retirado do deserto. Um dos momentos dramáticos dessa história ocorreu em dezembro de 1907, quando cerca de dois mil mineiros e suas famílias foram brutalmente assassinados na escola Santa Maria, em Iquique, quando protestavam por melhores condições de trabalho. O episódio virou tema da canção Cantata de Santa María de Iquique, do músico chileno Luis Avis, interpretada pelo grupo Quilapayún.

Com o dinheiro do salitre, cidades inteiras foram construídas com pinho de óregon, madeira carregada como lastro nos navios que provinham dos Estados Unidos. Um desses locais é Piságua, uma cidade portuária no Oceano Pacífico, hoje praticamente um cenário de ruínas, apesar de ainda habitada, com edifícios de grande porte como um hospital e um teatro abandonados. Lá também está uma das paisagens mais desoladoras visitadas pelo grupo: um cemitério centenário, recoberto de areia, onde há alguns anos foram descobertas algumas dezenas de cadáveres, vítimas da ditadura de Pinochet.

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Foto: Divulgação

Para potencializar a experiência de locais como esse, o curador estimulava a reflexão. “Muitos jovens artistas não sabiam de tudo que se passou durante a ditadura, por isso é importante que, durante as visitas, cada um fale sobre o que conhece dessa história”, disse Andaur.

O intercâmbio, assim, torna-se um método diário na viagem. Todos os participantes do grupo, fossem artistas reconhecidos, como Mario Opazo – chileno radicado na Colômbia – e o chileno Mauricio Toro-Garcia, fossem participantes de coletivos com um trabalho nada comercial, como La Pan, ou ainda os performers Nicolás Grum e Isabel Torres, em algum momento deveriam apresentar sua obra ao grupo.

Em outros momentos, Andaur sugeria que cada um deveria caminhar sozinho, como quando da visita a uma antiga mina de extração de “guano”, um fertilizante extraído de montanhas rochosas por escravos chineses, no século XIX, em Chanavaya. O nome do local é uma corruptela de “China Bay”, por conta dos “coolies”, como eram chamados os escravos brancos oriundos de Cantão, na China. Dezenas deles morreram em razão das péssimas condições de trabalho na época, mas a presença chinesa até hoje é visível em Iquique, a cerca de 50 quilômetros dessa região.

Além de Piságua, Tirana, Iquique e Chanavaya, o grupo passou por Victoria, uma cidade abandonada, que durante o esplendor do salitre era habitada por centenas de pessoas e atualmente tem em um coreto de cimento a memória mais visível do passado. Ao seu redor, e por um raio de centenas de metros, madeiras estão dispersas por toda parte, contribuindo para a imagem de desolação do abandono.

Justamente por conta das riquezas da região, Tarapacá foi centro de guerras territoriais, tendo pertencido ao Peru, entre 1532 e 1884. O Chile, com a Guerra do Pacífico, em 1879, começa a conquista da área, definida de fato apenas cinco anos depois. “Por conta dessas disputas, há uma forte questão de identidade na região. Afinal, muitas tradições peruanas seguem por aqui, entre elas a própria festa de La Tirana, que teve início com mineiros aimarás, bolivianos e peruanos”, conta  Bernardo Guerrero. Como forma de nacionalizar a festa, a Virgem do Carmo foi designada padroeira do exército do Chile em 1910.

Independentemente dos discursos oficiais, contudo, a festa conserva sua essência, já que é dos raros grandes eventos que não foram cooptados pelo marketing de grandes corporações.

Diante das experiências tão intensas, torna-se difícil imaginar como a arte poderia competir em forma e escala. “Do deserto já se produziram muitas imagens, mas o que me interessa é revelar processos”, conta Andaur, explicando o motivo do deslocamento como método.

Nos últimos anos, o conceito de sul tem sido observado como uma espécie de contraponto ao imperialismo do norte do globo terrestre, com Estados Unidos e Europa dominando as narrativas. A experiência em Tarapacá aponta como as possibilidades de quebra de paradigmas podem ocorrer em todo lugar, e, ao final, o Grande Norte está de fato mais próximo das características das noções anti-hegemônicas do que se considera o sul e pode ser um potente laboratório de reflexão sobre questões essenciais do momento presente, como ecologia, religião, identidade, memória e dominação. Lá, o vazio do deserto é apenas uma miragem.


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