Arte é para desafiar

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Instalação “Sala de Música” (2017), de Nevin Aladag, no Conservatório de Atenas. Foto: Mathias Voelzke

Em um espaço expositivo do Conservatório de Atenas (Odeion), cerca de uma dezena de móveis e utensílios domésticos foi transformada em instrumentos musicais pela artista turca radicada na Alemanha Nevin Aladag. No braço de um sofá, por exemplo, ela instalou cordas; nas bocas de panelas, couros. Diariamente, um trio apresenta performances com esses objetos, tocando músicas que, para quem está presente e fecha os olhos, soam como que extraídas de instrumentos convencionais.

Music Room, a instalação de Aladag, é um bom exemplo do conceito da documenta 14, aberta ao público no dia 8 de abril em Atenas: “Nossa esperança é que, mais do que ser uma mera reprodução de relações sociais existentes, a arte possa produzir e constituir espaço, permitindo discursos além do que é conhecido, e desafiar o previsível e lúgubre curso dos políticos e sociais eventos globais correntes que nos mantêm sem sono e em suspensão”, escreveu Adam Szymczyk, o diretor-geral da mostra.

Assim como Music Room, no Conservatório de Atenas, subverte as concepções tradicionais de produção musical, gerando som através do cotidiano e do banal, muitas das obras da documenta 14 buscam de fato criar novas formas de expressão, que não se limitam à representação, mas se transformam de fato em uma experiência.

Para tanto, Szymczyk e seu time curatorial evitam a todo custo uma mostra de caráter espetacular, privilegiando relações mais intimistas a partir de obras de pequenas dimensões, muitas delas performativas e sonoras, especialmente no Conservatório. Lá, por exemplo, estão também os instrumentos criados a partir de materiais descartados do mexicano Guillermo Galindo, que muito se assemelham aos criados pelo suíço radicado no Brasil Walter Smetak (1913-1984).

Com isso, a documenta 14 afasta-se definitivamente da ideia de um museu estático para buscar espaços com história e produzir diálogos com esse contexto. Faz todo sentido, afinal, que, no Conservatório, obras sonoras e performativas sejam majoritárias.

Um outro exemplo dessa estratégia está na obra do norte-americano Benjamin Patterson para os jardins do Museu Bizantino e Cristão.  Participante do movimento Fluxus, um dos grupos que deram origem à arte contemporânea, nos anos 1960, Patterson não obteve reconhecimento como Beuys, Nan June Paik ou Yoko Ono, também participantes do Fluxus. Para a documenta 14, ele criou uma sinfonia sonora de sapos nos jardins do museu, já que há 1.500 anos essa área era conhecida como Ilha dos Sapos. Outra referência para a obra é a peça As Rãs, do dramaturgo grego Aristófanes (405 a. C.). Patterson, morto no ano passado, propôs essa obra como um “grafite sonoro” composto por gravações do coachar de sapos e de seres humanos imitando o anfíbio.

Assim, em Atenas, a mostra divide-se em nada menos que 40 espaços, alguns com apenas uma obra, caso do Museu Bizantino, outros com conjuntos mais numerosos, como o Conservatório, onde estão alocados 47 artistas, e o Museu Nacional de Arte Contemporâneo, com 70. Todos os locais onde a mostra ocorre são espaços públicos. Szymczyk não quis se aliar aos colecionadores privados gregos com seus museus particulares. Também compõem a configuração grega da documenta 14 uma programação para um canal de televisão local, a ERT, denominada Keimena, com a exibição de filmes de diretores como Chantal Akerman, Apichatpong, Harum Farocki e Jonas Mekas, com introduções comentadas. Desde 8 de abril, no site da documenta, também são feitas emissões por rádio, sendo que, entre 9 e 28 de julho, a Rádio MEC do Rio de Janeiro será responsável pela programação, ação coordenada por Janete El Haouli e José Augusto Mannis.


“Vamos falir”

A documenta 14 terá também uma ampla programação pública organizada por Paul Preciado, denominada Parlamento dos Corpos, que teve início já em setembro do ano passado e que terá a presença de Suely Rolnik durante a fase final em Atenas, junto com Aílton Krenak. No dia 27 de abril, com a questão “Como é se sentir um problema”, o Parlamento dos Corpos iniciou sua fase em Kassel.

É desse programa que vem um dos fortes questio­namentos sobre o próprio modelo do evento: “Como se pode produzir uma crítica dentro de uma megamostra em uma economia neoliberal globalizada? Somos forçados a abraçar contradições. Pode o museu ser usado contra seu próprio regime patriarcal e colonialista de visibilidade? Podem as tensões entre Atenas e Kassel serem usadas como um espaço crítico para pensar uma ação artística alternativa e projetos ativistas além do conceito de estado-nação e corporações? Como se produz ação através da cooperação? Vamos falir, mas vamos tentar”, afirma Preciado no texto sobre o Parlamento.

A citação é longa, mas aponta de forma significativa como essa edição da documenta pretende estar mais próxima de um estado de dúvidas do que de certezas. Outro aspecto que aponta para essa estratégia é seu programa educativo. Aprendendo com Atenas é o nome de trabalho da mostra e, na coletiva para jornalistas, Szymczyk afirmou que “aprender com Atenas é constatar que é preciso abandonar preconceitos, que a grande lição é que não há lições”.

Por isso, o termo cunhado para o programa educativo é justamente “unlearning”, ou seja, “desaprender”.  Isso se reflete na mostra de forma bastante radical, já que raros trabalhos da exposição são contextualizados ou explicados em legendas, obrigando os espectadores a ter uma experiência sem mediação com as obras. Em muitos casos, a falta de informação chega a comprometer a compreensão da obra. Afinal, o contexto é importante para entender, por exemplo, que as pequenas colagens de Elizabeth Wild, exibidas no Conservatório, são fruto de uma trajetória singular. Nascida em Viena, em 1922, ela emigrou para a Argentina, em 1938, fugindo do nazismo. Em 1962, ela se transfere para a Suíça e, finalmente, para a Guatemala, em 1996, onde vive até hoje. Lá, todo dia, ela realiza pequenas colagens a partir de revistas, uma espécie de diário de exílio, vivendo em meio à floresta Panajachel, junto com a filha Vivian Suter, outra artista na documenta, afastadas do mundo “civilizado”. É possível, contudo, entender parte dessa história no vídeo de Rosalind Nashashibi, Vivian Garden, exibido na Escola de Belas Artes de Atenas, outro dos locais da mostra. No filme, veem-se a convivência de Wild com sua filha na modesta casa onde vivem e a produção das colagens.

É na Escola, aliás, que a mostra aponta claramente experiências libertárias e comunitárias, como a chilena Ciudad Abierta, uma espécie de laboratório pedagógico, criado em 1965, por um grupo de artistas e poetas vinculados a uma escola de arquitetura, buscando propor vivências em espaços abertos.

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Marta Minujín na performance “Pagamento da Dívida Grega” para a Alemanha com Azeitonas e Arte, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, com a participação de uma sósia de Angela Merkel, a Chanceler alemã, realizada na abertura da documenta 14 em Atenas


Ausência de brasileiros

“A documenta não é a ONU”, ironizou Adam Szymczyk, quando na coletiva de imprensa um jornalista perguntou por que havia poucos artistas da América Latina. A questão, aliás, tampouco foi precisa. Dos 138 selecionados listados no Daybook da documenta 14, a publicação dedicada aos artistas vivos da mostra, 14 são latino-americanos, quase 10% do total. É o mesmo número de artistas gregos, o que faz sentido, por conta do deslocamento conceitual para Atenas.

Claro que a ausência de artistas brasileiros é sentida. Afinal, ao menos em suas últimas cinco edições, artistas como Jac Leirner, José Resende e Cildo Meireles (1992), Tunga (1997), Artur Barrio (2002), Maurício Dias & Walter Riedweg (2007), Anna Maria Maiolino e Renata Lucas (2012), entre outros, estiveram presentes. E o país tampouco deixou de estar na rota de pesquisa dos curadores da mostra, que passaram por São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, mas acabaram não selecionando ninguém.

Também é significativa na mostra a quantidade de artistas do Leste Europeu (são 19), praticamente o mesmo número de artistas da América do Norte, com Canadá e Estados Unidos. O diretor-geral da mostra vem da Polônia.

Contudo, de fato, a documenta 14  nem sequer lista seus artistas por nacionalidade, como ocorre em geral em catálogos de bienais. O Daybook lista os artistas vivos, apontando apenas a cidade onde nasceu, e isso nem ocorre para todos. Já os artistas mortos (são 60) não têm uma publicação própria e estão listados apenas no booklet que acompanha o Daybook.

Seja nas publicações, seja na mostra ou na programação pública, é visível que a documenta 14 se esforça em buscar novos procedimentos em abordar a arte contemporânea. Falir faz parte do projeto, mas a tentativa de fugir do padrão já é um grande mérito.


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