Aventuras e desventuras pós-Guerra Fria

Em 9 de novembro de 1989, às 20h30, Heinz Schäfer, oficial superior das tropas de fronteiras, dá a ordem: “Abram! Deixem passar!”. A decisão não foi sua e sim de superiores do governo da até então República Democrática Alemã. Estes, impossibilitados por inúmeros fatores de manter o regime político em vigor, declaram a abertura do Muro de Berlim e consequentemente a liberdade de trânsito tão cobiçada desde 13 de agosto de 1961, quando houve sua demarcação e construção da primeira geração.

Enquanto o lado oriental era resguardado por um eficaz aparelho de segurança, sua superfície ocidental passou a ser utilizada como uma das maiores galerias de arte a céu aberto. Inúmeros artistas residentes em Berlim, como Therry Noir, seguidos por outros de renome internacional, como Keith Haring, tinham em 1986 o Muro como um espaço público para realização de pinturas em site specific e de caráter efêmero, pois qualquer cidadão poderia se apropriar da mesma superfície.
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Vinte anos depois nos deparamos com um país reunificado e reformulado. Berlim é testemunho vivo desse processo e passou a ser principal protagonista após sua nomeação como capital da República Federativa Alemã em 1990, status esse já vivenciado pela cidade em períodos anteriores. O Muro de Berlim deixou mais uma cicatriz encravada na cidade, como tantas outras conquistadas, no percurso de sua vivência política e histórica.

A mídia celebrou a queda do muro e a consequente reunificação do país como uma conquista pacifista, uma batalha sem armas. Surge a partir daí uma grande metamorfose no âmbito político, econômico, social e cultural. Este último fator passa a ser determinante da formatação do perfil da nova capital alemã. A cultura passa a alinhavar fragmentos de uma ex-metrópole esfacelada e desgastada aparentando ainda vestígios da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria em vigor até final da década de 1980.

O coração revolucionário de Berlim deixa de pulsar no legendário bairro de Kreuzberg para desvendar novos caminhos no lado oriental da cidade, iniciando pelo bairro de Mitte. Mitte era tido como o antigo bairro habitado por judeus. Dos 40 mil judeus residentes em Mitte antes da Segunda Guerra Mundial, somente uma centena sobreviveu ao genocídio. As bombas destruíram grande parte do bairro e por fim a criação do Muro de Berlim isolou essa parte da cidade tornando as relações sociais e econômicas inviáveis. Esse território passou a ser dominado pela União Soviética, incluindo a valorizada parte histórica do bairro, como a Alexanderplatz e demais avenidas largas destinadas a passeatas propagandistas.

O cinza homogêneo do inverno berlinense foi rebatido por uma avalanche de pessoas a desbravar este território incógnito, e em princípio “terra de ninguém”, até que os inúmeros processos de restituição de posse fossem esclarecidos. Surge aí um dos centros culturais mais pulsantes da atualidade e consequentemente uma das áreas de maior especulação imobiliária.

A Auguststrasse passa a ser palco do novo mecanismo cultural local. Em junho de 1992 acontece pelo período de uma semana a mostra 37 Espaços – intervenções em 37 locais inusitados ao longo da Auguststrasse. Pela primeira vez, a caravana internacional presente em Kassel por ocasião da Documenta se dirige a uma Berlim libertada e à espera do desbravamento. A ocupação de Mitte acontece encabeçada por muitos aventureiros e alguns visionários. Nesta segunda categoria se inclui o curador alemão Klaus Biesenbach, que alugou na época o prédio de uma extinta fábrica de margarina transformando-a no centro cultural Kunst-Werk, do qual ainda é conselheiro. Além disso, foi recentemente nomeado diretor do P.S. 1 de Nova York, após trabalhar desde 1996 como curador chefe do departamento de novas mídias no Museum of Modern Art. Klaus Biesenbach criou uma importante veia institucional em Berlim fundando ainda, a partir de 1998, a Bienal Berlim com sede no Kunst-Werk.

No âmbito comercial surgem as primeiras galerias também no ano de 1992 na Auguststrasse. Um dos pioneiros é Gerd Harry Lybke, fundador da Eigen-Art, com um vasto programa de artistas provenientes da Alemanha Oriental e mais especificamente de Leipzig, onde fundou sua primeira galeria clandestina em 1983.

A abertura do Muro desencadeou um novo fenômeno, que soterrou em partes uma cena artística reconhecida e atuante internacionalmente para dar lugar a uma nova tendência vinda e criada do Leste Europeu. A queda do muro teve um efeito dominó com consequências marcantes e tentáculos que se estendem até a China contemporânea. Na cena das artes plásticas em âmbito berlinense vivenciamos plenamente o fim de tendências como as estabelecidas por grupos artísticos, a citar os Neue Wilden cedendo lugar para a Leipziger Schule. A competição está declarada: Oriente contra Ocidente! A fraternidade que pairava o ar no final de 1989 dá lugar a uma nova batalha existencial.

Nesse meio tempo também foi criada a feira de arte berlinense Art Forum, cuja 14a edição encerrou suas portas em 2009 contabilizando a presença de 40 mil colecionadores nacionais e internacionais. Klaus Wowereit, prefeito de Berlim desde 2002, declarou: “Berlim é pobre, porém sexy”. Sua capacidade de sedução atrai pessoas de todo o mundo. Em seu histórico prussiano não há uma tradição de colecionismo, porém Berlim atual é um dos maiores think tank da atualidade. As condições de trabalho fazem com que renomados artistas internacionais, como Taceta Dean, Olafur Eliasson, Mona Hatoum, Monica Bonvicini, se instalem nesta cidade. Reconhecidos artistas brasileiros também trocaram os trópicos pela sobriedade europeia, a citar Alex Flemming, Cristina Canale e Carla Guagliardi. Surge aqui um laboratório dinâmico explorado por curadores, críticos de arte internacionais e colecionadores, que se infiltram nesse patch work singular no contexto nacional comparável à vivência cultural local da década de 1920. Naquela época, movimentos como o Dadaísmo, ou escolas como a Bauhaus, atraíram um imenso potencial internacional para o território alemão.

A cidade contabiliza hoje a existência de 450 galerias de arte pulverizadas em vários bairros, sempre visualizando que quantidade não é necessariamente símbolo de qualidade! Os programas e perfis das galerias oscilam entre jovens artistas, artistas de carreira média e artistas renomados. Houve também a criação de Produzenten Galerien (galerias produtoras), criadas e subvencionadas por jovens artistas em início de carreira, coordenadas por um gerente nomeado pelos próprios artistas. A destacar Liga, Amerika, Rekord e Diskurs. Algumas delas superaram essa fase inicial e fazem parte do pool de galerias comerciais atuantes na cidade como a Galeria Christian Ehrentraut, ex-fundador da Liga sempre apoiado por Gerd Lybke.

Os museus locais não possuem um orçamento adequado para seu gerenciamento trivial, aquisição de novas obras e manutenção de acervo. Por isso, pleiteiam o apoio da iniciativa privada, assim como da vasta rede de galerias locais e colecionadores privados por intermédio dos quais adquirem regularmente empréstimos para as mostras aqui apresentadas.

A produção local era, até o início da crise financeira mundial, há um ano, concorrida por colecionadores sedentos, que arrematavam nos ateliês obras recém-acabadas. Surgem aí representantes de coleções privadas, algumas das quais com endereço fixo em Berlim e abertas ao público em geral em concorridas datas preestabelecidas. Uma das pioneiras é a Coleção Hoffmann, que apresenta uma seleção de obras reunidas nos últimos 30 anos em sua Penthouse no bairro de Mitte, cujo prédio foi construído e concebido com subsídios públicos contendo a cláusula de torná-la, em contrapartida, aberta ao público em geral aos sábados. Um dos mais recentes e inovadores projetos nesse sentido é a coleção de Christian Boros, sediada em um antigo bunker de 1942, construído para abrigar até 2 mil pessoas nos bombardeios dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Após passar por uma reforma muito bem-elaborada, essa construção é sem dúvida um dos locais mais seguros do mundo para armazenar obras de arte.


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