Bienal para o terceiro mundo

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Performance realizada durante a mostra


“Durante 1984
, enquanto devolvia as obras da primeira Bienal, dediquei-me a estudar o fenômeno das bienais no mundo. E li tudo o que havia aparecido nas revistas internacionais de arte sobre o tema. Dessa pesquisa tirei duas conclusões: uma, de que havia que dar a esse evento, que tinha sido denominado bienal, uma estrutura diferente daquelas que já existiam no mundo, como as de Veneza e de São Paulo, advindos paradigmas, mas que tinham estratégias que não se moldavam ao que considerei que devia ser o objetivo daquela, ocorrida em Havana. E a outra conclusão foi a de que nem esses eventos nem as revistas de circulação internacional se encarregavam do que ocorria com a arte na África, no Oriente Médio e na Ásia, assim como também não se interessavam pelos artistas latino-americanos que residiam em seus países. Daquelas regiões só se falava da arte tribal e tradicional e, relacionado à América Latina, dos artistas consagrados, em geral os que tinham feito sua carreira em Paris. Considerei então que meu nicho estava na criação de um espaço capaz de dar visibilidade aos artistas dessas regiões, aos quais ninguém dava importância, e para isso tinha que inventar uma estrutura expositiva de acordo com esse propósito.” “Foi um gigantesco Salon des Refusés do mundo, que fomentou o futuro nascimento do que Rafal Niemojewski (diretor da Biennial Foundation) chamou de uma “nova raça de bienais”, que enfrentava o paradigma centralizador de Veneza. Ou seja, iniciou a era das bienais internacionais por todo o mundo.”

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Pablo Milanes e Chico Buarque se apresentam na mostra

A primeira declaração é de Llilian Llanes, organizadora, junto com o então ministro da Cultura, Armando Hart, da segunda edição da Bienal de Havana. A segunda reflexão é de Gerardo Mosquera, que se encarregou dos eventos teóricos de tal experiência. Talvez seja esta segunda afirmação, que identifica a Bienal de 1986 como pioneira em abranger artistas de países até então não considerados pertencentes ao circuito artístico internacional, aquela que justifique sua inclusão nesta série da ARTE!Brasileiros como a mostra inaugural de uma seleção de exposições históricas.

A segunda edição da Bienal de Havana foi efetivamente inclusiva com nações não somente da América Latina e do Caribe, mas também da África e da Ásia, como Angola, Argélia, Burkina Faso, Egito, Gana, Irã, Iraque, Sudão ou Zaire: “No começo houve crítica na América Latina em relação a abrir o evento a essas outras regiões, argumentos de que nelas ‘não havia arte contemporânea’. Diante daquele vão preconceito, só pensei em dizer aos que assim pensavam que eles mantinham em relação à África e à Ásia a mesma atitude que os europeus tinham em relação a nós”, disse Llanes em entrevista. Foram expostas durante um mês mais de 2.400 obras de 690 artistas provenientes de 57 países (entre outros, Luis Camnitzer, Juan Downey, Paz Errázuriz, Juan Francisco Elso, Helen Escobedo, Graciela Iturbide, Cildo Meireles, Manuel Mendive Hoyos, Liliana Porter e Cecilia Vicuña). Foram outorgados dez prêmios. Foi o primeiro grande evento artístico que falou sobre os efeitos da globalização, três anos antes da mostra Magiciens de la Terre (França), oito anos antes de Cocido y Crudo (Espanha) e mais de dez anos antes da Bienal de Johannesburgo e da dOCUMENTA de Okwui Enwezor. Avançou em temáticas que foram depois centrais nas grandes exposições dos centros não hegemônicos de produção, como pós-colonialismo. O curador Carlos Basualdo ressalta a diferença entre a bienal europeia de referência e esta instância americana: “Veneza foi originalmente concebida com base em uma ideologia universal claramente relacionada com o colonialismo europeu; Havana, em contraste, foi cenário de um projeto ideológico que era diametralmente oposto a isso”.1

É por esse caráter aglomerante de experiências e de obras de arte de criadores de países periféricos que esta Bienal foi considerada a “Bienal do Terceiro Mundo”. Mas também havia um aspecto que ia mais além: o ideológico. Armando Hart escreveu o seguinte: “No ano de 1981 entrou a administração Reagan, juntamente com sua orientação doutrinária em relação ao Oriente/Ocidente na política mundial e sua beligerância em relação a Cuba e à Nicarágua. (…) As grandes metrópoles capitalistas criam os modelos de uma arte universal. Sem menosprezar os valores universais que existem em algumas dessas produções – cuja assimilação crítica não se pode rejeitar –, o certo é que elas marginalizam a rica produção artística dos países do Terceiro Mundo”. Hart tinha claro qual era o objetivo da segunda Bienal de La Habana: “Nosso propósito é confrontá-los internacionalmente sem nos isolarmos. Nosso problema é deter essa produção de uma cultura universal hegemonicamente implantada e criada sem nossa participação”.

 

Para Llilian Llanes, talvez mais desapegada da esfera política que o então ministro da Cultura, o aspecto ideológico não estava em seu programa. Estava, contudo, a ideia de evento descentralizado, composto por concertos de música (como o inaugural, com a atuação de Chico Buarque, Mercedes Sosa e Pablo Milanés), exposições paralelas, encontros, conferências e workshops que se davam em diversas localidades de Havana. Dessa parte teórica comandada por Mosquera foram extraídos conceitos tão interessantes como o de “cimarronagem”, que o próprio curador esclarece como sendo derivados das pesquisas de René Depestre. “Os cimarrons eram escravos africanos que fugiam para viver na montanha. Eles foram muito importantes no Brasil, Jamaica e, principalmente, no Suriname, onde conseguiram conservar até hoje as sociedades que organizaram na selva. Acredito que foi Depestre quem acunhou o termo de cimarronagem cultural, para se referir a ações de rebeldia cultural diante do poder dominante”. Para os encontros culturais foram convidados intelectuais estrangeiros tais como Dore Ashton, que não somente trouxe seu conhecimento para a mesa de debate como também o fez na pista de dança: “Ela foi acompanhada de seu marido, um escritor israelense, e uma noite eu e minha esposa os levamos para ver o show de Tropicana e dançar”. Os teóricos são sérios, sim, mas também sabem dançar. Ainda mais se estiverem em Cuba. E não foi a única presença norte-americana em Havana. Outro dos êxitos desta Bienal foi a mostra Por Cima do Bloqueio, organizada por artistas dos Estados Unidos que levaram, pela primeira vez, sua arte a Cuba.

Fazendo uma retrospectiva, um dos poucos “pontos negros” deste evento foi manter a outorga de prêmios a artistas, que neste caso foram para Lani Maestro (Filipinas), Antonio Ole (Angola), Marta Palau (México), Carlos Capelán (Uruguai) e José Bedia (Cuba). Algo que para Nelson Herrera Isla, encarregado da montagem das exposições, foi corrigido a partir da terceira edição da Bienal: “O importante era deslocado para o terreno da confrontação sadia, do diálogo, do caminho a percorrer juntos e não para a obtenção de galardões”.


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