Exposição de arte naïf questiona rótulo de ingênua

Movimento estudantil, Euclides Coimbra. Foto: Divulgação
Movimento estudantil, Euclides Coimbra. Foto: Divulgação

Em arte, o termo naïf traz mais problemas do que soluções. O termo busca, numa palavra oriunda do francês, desconhecida pela grande maioria, uma nomenclatura suficientemente nebulosa para definir um tipo de produção, persistente, extremamente rico e diverso, mas cercado de preconceitos e impossibilidades de definição. Se recorrêssemos ao português, os termos mais recorrentes seriam arte ingênua ou primitiva, o que por si só já indica um olhar enviesado, uma tentativa de enquadrar e excluir. No entanto, é exatamente a partir de um evento que tem essa palavra por título que se dá atualmente na cidade de São Paulo um dos mais instigantes diálogos da temporada entre diferentes – e complementares – tipos de produção artística.

Trata-se da exposição Todo Mundo É, Exceto Quem Não É, itinerância da Bienal Naïfs do Brasil, em cartaz no Sesc Belenzinho, que reúne as 228 obras selecionadas para a 13a do evento, uma seleção cuidadosa de artistas modernos e contemporâneos. Os curadores fazem questão de sublinhar que o ponto de partida para o diálogo proposto foi o exame e a seleção dos quase mil trabalhos inscritos, provenientes de 25 estados. Somente a partir desse conjunto bastante diversificado é que foi possível definir questões que norteariam a exposição, como espacialidade, materialidade, etc. “A seleção é um processo de escuta”, afirma Clarissa Diniz, que assina a curadoria com Claudinei Roberto e Sandra Leibovici.

A escolha dos artistas já referendados pelo circuito radicaliza a tendência que já vinha se fazendo sentir em edições anteriores da Bienal – organizada há 30 anos na cidade de Piracicaba. A curadoria evitou redundâncias, reiterações temáticas e formais. Procurou tencionar, borrar os limites que colocam, de um lado, a produção aceita pelo sistema das artes e, de outro, aquelas expressões circunscritas à margem, que encontram no modelo de salão da Bienal de Piracicaba um dos raros espaços de circulação e visibilidade.

A opção de expor lado a lado trabalhos de mestres como Volpi, Flávio de Carvalho, Guignard e José Cláudio e obras recentemente feitas por artistas anônimos de todo o País, numa montagem propositalmente tortuosa, sem caminhos assertivos, coloca o público diante de uma trama interessante e provoca uma série de questionamentos. Logo na entrada o espectador se depara com as figuras primitivas e potentes criadas com tubérculos por Cristiano Lenhardt, que tiveram grande destaque na 32a Bienal de São Paulo, e que imediatamente parecem dizer que tudo ali é mais complexo do que parece.

Muitas vezes é difícil distinguir a qual grupo pertence o autor, se ao dos inscritos ou ao dos convidados. Há algumas pistas, como a menção da proveniência do trabalho (as obras de artistas conhecidos muitas vezes foram cedidas por alguma coleção), a referência a uma eventual menção recebida no processo de seleção ou a assinatura mais rústica e evidente dos primeiros.

Num movimento de duplo sentido, é possível ver não apenas como a produção dos artistas ignorados pelo mercado e pelo circuito têm elementos em comum com os artistas mais incensados, mas a coincidência de questões entre esses dois universos. Em outras palavras, veem-se nos trabalhos inscritos qualidades do contemporâneo e no contemporâneo sua origem popular. Segundo Diniz, a intenção da curadoria era ainda mais provocadora: “Não procuramos dizer que o contemporâneo se serve do popular, mas sim que a matriz popular é que é contemporânea”. A mesma busca de dissipação de sentidos estreitos para a noção de arte primitiva se faz sentir na exposição complementar, Evidências, que traz uma seleção de obras participantes da Bienal desde sua criação.

Outro aspecto interessante da seleção é a forte presença, entre os selecionados, de obras que se debruçam sobre questões amplamente debatidas nos dias de hoje, como a defesa dos direitos das mulheres, dos negros e índios (não à toa o título se inspira numa frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro). O caos urbano e o conflito entre modernidade e tradição, como se  nota na tela de Hebe Sol na qual se veem crianças índias totalmente aculturadas, mexendo em aparelhos eletrônicos sobre as costas de um gigantesco jacaré, tendo ao fundo o encontro entre os rios Negro e Solimões, também estão fortemente presentes.


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