Fósforos, carne, tênis e amor com “A” maiúsculo

Paçoca Amor
“Muitos Kg de Amor”, de Sandro Ackel, exposta na galeria Mezanino

A paçoca Amor, os telefones iPhone e Nokia, os tênis New Balance e Adidas, a revista Playboy, o guaraná Jesus. São algumas marcas que a gente pode ver não apenas nas vitrines dos shoppings ou prateleiras de supermercados. Logotipos criados para embalar e impulsionar a venda de produtos passeiam hoje despudorados pelas galerias e feiras de arte de São Paulo, retomando discussões sobre massificação, consumo e outros tópicos da arte pop.

Claro que a palavra “capitalismo” vai surgir em algum ponto desse texto, caro leitor. Quando um rótulo é levado para dentro do espaço expositivo ou museológico, ele se revela invertido em seus significados, perde a função do marketing e veste a estampa da metalinguagem, como se experimentássemos a contaminação de um ambiente virginal. O valor de venda, porém, pode não ser tão baixo como o de um doce de padaria. As paçocas de Sandro Ackel (foto acima) custam, por exemplo, R$ 1.500 cada (promoção: o conjunto de sete sai por R$ 6.500).

Desde que Andy Warhol, em 1962, utilizou as sopas Campbell em um trabalho que criticava a indústria na mesma medida em que dava publicidade a uma marca da indústria alimentícia, fazer essa mistura não tem sido uma provocação escandalosa. No caso das sopas Campbell, Warhol a consumiu “sempre igual” durante 20 anos, declarou certa vez. Não é preciso somar dois mais dois para saber que o artista apontava para um futuro distópico e ainda presente.

"32 Campbell's Soup Cans", 1962, de Andy Warhol
“32 Campbell’s Soup Cans”, 1962, de Andy Warhol.

Cildo Meireles também nos brindou com um rótulo famoso, o da Coca-Cola, só que colocando sua arte no contexto do comércio e não o comércio no contexto das galerias. Em 1970, ele cria Inserções em Circuitos Ideológicos, inserindo em garrafas de refrigerante vazias, na época retornáveis, a frase “o frasco sempre carrega consigo uma ideologia”. Discretamente, fazia circular um complemento ao que Warhol propôs nos Estados Unidos.

Mas, e hoje? O que é dito quando o assunto é consumo e reproduções da indústria?

Na galeria Mendes Wood, Paulo Nazareth abriu uma mostra loteada por logomarcas, em que reúne as séries Produtos do Genocídio, com sua pesquisa sobre organizações que se utilizam de nomes e elementos indígenas e afros, e também o Bestiário Capital, série de desenhos de animais retirados de logomarcas, tal qual o coelho da revista Playboy.

Desenho da série "Bestiário Capital", de Paulo Nazareth. Foto: Gustavo Fioratti
Desenho da série “Bestiário Capital”, de Paulo Nazareth. Foto: Gustavo Fioratti

Para Nazareth, a escolha do termo “bestiário” nos conduz à ideia de um inferno habitado por seres zoomórficos. O artista chega a fazer associação com “bestas do apocalipse”. “Tudo hoje se torna um objeto cuja imagem é tragada pelo poder do capital”, define. “O mercado vai tragando a nós todos; torna-se impossível escapar dessa condição”, conclui o artista.

Mais do que criticar o capitalismo, Nazareth nos propõe passear pela narrativa que o mercado construiu no decorrer do tempo, criando seu próprio recorte historiográfico. Ele resgata a imagem de negrinhos caricatos em embalagens, de barões escravocratas, dos índios estereotipados. São objetos recolhidos em andanças pelo país, carregados de ideologias.

O caso das paçocas Amor, de Sandro Ackel, exibidas na galeria Mezanino, parece ainda mais sarcástico. Feitas de concreto puro (o peso líquido de 29 gramas exibido não corresponde à massa real), estampam em suas embalagens de papel o mesmo coração sobre fundo amarelo que desde os anos 1980 o brasileiro vê ser vendido nas cantinas das escolas. Só que agora o “produto” aparece empoeirado e com superfícies desgastadas pelo tempo.

Peças de cerâmica da série "50% Off", de Laerte Ramos. Foto: Gustavo Fioratti
Peças de cerâmica da série “50% Off”, de Laerte Ramos. Foto: Gustavo Fioratti


Retrato do consumo

Na feira SP-Arte, que acabou no último domingo, Laerte Ramos expôs pares de tênis da série 50% off: Dobras, Vincos e Desgastes, com modelos feitos em cerâmicas, todos hiper-realistas. Era uma obra em sintonia com um tema que persiste. O mercado e o marketing foi abordado por diversas exposições que participaram da Gallery Night , circuito noturno de galerias que abriu a grade da SP-Arte.

A galeria Baró, por exemplo, mostrou trabalhos de Almandrade, com ao menos uma menção à sociedade de consumo. Embora menos estampada, a obra nos coloca diante de um monte feito com fósforos queimados, colocado sobre o piso. Um pouco acima deles, um elástico fica tensionado entre dois pontos fixos na parede. “Há, nos fósforos, uma energia já consumida, e no elástico, a energia produzida pelo tensionamento”, diz o artista.

"Ópera dos Porcos", gastroperformance de Simone Mattar
“Ópera dos Porcos”, gastroperformance de Simone Mattar. Foto: Gustavo Fioratti

Também durante a Gallery Night, na galeria Rabieh, Simone Mattar apresentou a performance “Ópera dos Porcos”, com foco mais específico no consumo de carne e alimentos. A artista projeta imagens em esculturas de cabeças de porcos pregadas à parede. Eles parecem cantar uma música grotesca. Depois, os espectadores são convidados a enfiar colheres e garfos nos trabalhos para descobrirem, lá dentro, uma massa que pode ser devorada, feita de feijão.

Numa sala próxima, também são servidas massas com formatos que lembram às vezes linguiça e às vezes fezes. São igualmente comestíveis. O gosto é algo próximo do mocotó.  

Obra de Lucas Bambozzi
Obra de Lucas Bambozzi. Foto: Gustavo Fioratti

Por fim, Lucas Bambozzi, também durante a SP-Arte, exibiu aparelhos celulares envoltos em resinas transparentes, como se fossem fósseis. Alguns celulares permanecem ligados, e o artista conta à ARTE!Brasileiros que as frases exibidas em um aparelho foram extraídas do filme Blade Runner, o Caçador de Androides. Amontoados no piso, outros vários celulares parecem descartados e obsoletos, embora alguns deles ainda pisquem suas luzes ou deem algum outro sinal de vida.


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