Jimmie Durham desmistifica chavão estético

A aparição de Jimmie Durham (Arkansas, 1940) no Brasil tem se duplicado nos últimos meses. Depois de sua vital presença na 29ª. Bienal de São Paulo, Jimmie realizou uma mostra, ainda aberta, na Galeria Progetti, no Rio, sendo ambas uma pesquisa artística de acentos críticos, além da estética. A entrevista concedida não só desmistifica chavões estéticos e culturais, como oferece outra visão da arte, fora do recalque do multiculturalismo, assim como posições importantes de sua poética.

ARTE!Brasileiros: Você sentiu e delatou o imperialismo mental norte-americano detectado na cidade de São Paulo, na época da última Bienal, com seu trabalho International Center for Research of Normal Phenomena (2010). Paralelamente, no Brasil, a ignorância da cultura, das raízes indígenas, ainda é chocante. Isso o surpreende? Tem algumas semelhanças com os Estados Unidos?
Jimmie Durham:
Para começar, observe que o título do meu trabalho na Bienal é Escritório de Pesquisa sobre a Normalidade Brasileira. Concebi a peça como um ataque ao Brasil. É ainda uma triste verdade a de que países nas Américas tentem copiar os Estados Unidos e sua cultura comercial. Mas isso não faz parte do meu ataque (por favor, lembre também que o português é uma língua estrangeira no Brasil.) Eu quis mostrar aos brasileiros elementos especificamente nocivos de sua própria cultura. Todos os países das Américas são, sem dúvida, culpados do contínuo genocídio contra nós, o povo indígena. Todos, penso, são também arrogantemente hipócritas na negação de suas realidades.

AB.: Morando nos Estados Unidos, você se considerava “exilado em seu próprio país”. Depois, morou em vários lugares, de culturas diferentes (América Central, Oriente, agora Europa). Em que mudou aquele exílio? Ou o que diz este novo exílio atual em relação a aquele anterior?
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J.D.: Na verdade, eu deixei os EUA em 1987 e vivi oito anos no México. Eu tinha vivido antes também na Europa. Deixei primeiro os EUA, pela Europa, em 1969, e fiquei lá por quatro anos. Nasci no exílio, mas não me senti “exilado” na Europa. Minha ambição na vida é me tornar um “órfão sem pátria”. Não acho bom para os artistas imaginarem a si mesmos como membros de alguma nação… é como um time de futebol, não é? Na Europa eu posso participar em qualquer diálogo sem precisar ser francês ou italiano. É como se a vida se tornasse potencialmente mais inteligente.

AB.: Tunga já comentou em alguma ocasião que a identidade do brasileiro era flutuante. Hoje, identidade e mundo não é um território fácil de localizar, como o pretende a promoção da globalização. Em seu caso, a identidade parece mais um work in progress que uma categoria estática ou fixa, como declara seu próprio trabalho Humanity is Not a Completed Project (2007), não? (Aliás, o contrário do que pensa o cardeal Ratzinger sobre a estrutura humana, por exemplo…)
J.D.:
Globalização é uma palavra carregada de tantas nuances diferentes que não deveria ser usada de jeito nenhum atualmente. Sempre há a questão subjacente de quem tem o poder… Mas vivemos num tempo verdadeiramente espantoso; quando a humanidade, pela primeira vez, está tentando falar consigo própria. Você mencionou o papa; estranha coincidência porque eu vivo parte do ano em Berlim, e a outra parte em Roma, então estou perto desse monstro. Nos anos 1970 eu viajava constantemente à América Latina, como parte de meu trabalho nas Nações Unidas. Na Igreja Católica a “teologia de libertação” latino-americana estava se tornando uma força para o bem; para provocar uma mudança naquela velha história colonial europeia. Você deve saber que foi o Ratzinger o responsável pela sua destruição. Todas as, assim chamadas, “grandes religiões” ensinam que a humanidade foi criada; portanto é estática e imutável até a hora final. O senso, isto é, nosso próprio intelecto, ensina que nós, assim como tudo mais, continuamente mudamos e evoluímos. Penso que isso deveria dar aos artistas um sentido de energia-e-potencialidade e também de responsabilidade.

AB.: Existe uma tendência em seu trabalho em mergulhar em outras identidades locais… (catando, recolhendo, depois montando constelações objetuais). Provas Circunstanciais do Brasil (2010), assim como História Concisa de Portugal (1995), aludem a uma reflexão cultural ampla, uma interação com o lugar que soa muito forte (e até, no fundo, algo irônico com as palavras circunstanciais, concisa…). Que significações entram em jogo com essas referências tão específicas e ao mesmo tempo alheias?
J.D.:
Obrigado por mencionar a exposição em Lisboa, foi uma das primeiras exposições que fiz ao retornar à Europa em 1994. Eu estava lendo o belo livro de José Saramago, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, e fui convidado para ficar um mês em Lisboa e fazer o que viesse à mente. Todos os dias eu caminhei pelas ruas, encontrei coisas pelo caminho e fiz compras em lojas. Perguntei ao escritor se podia usar citações retiradas de seu livro nos trabalhos que fiz, e ele concordou imediatamente. Seu humor agudo e esquisito fez com que o material e os objetos exóticos de Portugal falassem de maneira ambígua e específica ao mesmo tempo – para mim, quase como pequenos oráculos tagarelas. Pessoalmente, senti um parentesco com seu modo de pensar e escrever – poderia se dizer que “harmonizei com ele”; como o fiz anteriormente com Joyce, Calvino e outros.

Ser influenciado é mudar, e eu adoro a energia da mudança (quando deixei o México, deixei de fumar, após quarenta anos como fumante inveterado). Quando criança, aprendi inglês. Na Europa falei (mal) um pouco de italiano, alemão, espanhol e francês. Não seria proveitoso para mim insistir em falar cherokee com pessoas que não entendem essa língua. Do mesmo modo, não me ajudaria tentar fazer a mesma escultura ou contar as mesmas estórias em Turim ou Viena, que eu faria em meu país. Seria uma performance de circo de pouco interesse para mim ou para a audiência. Eu quero participar, e quando alguém participa, se transforma – a vida anda pra frente, em vez de estacionar.

Sarat Maharaj disse que o fazer da arte é a produção de sentido. É um esforço intelectual. Assim, precisamos de qualquer coisa, qualquer material, qualquer campo (texto, ciência, música), qualquer conceito que possa ser de interesse. Um dos fenômenos mais libertadores de hoje é a compreensão de que a arte pode ser feita de absolutamente qualquer coisa, se o artista é sério o suficiente. Se eu coloco estas três coisas juntas como um kit: necessidade de mudança, arte como um trabalho intelectual e o fato de que arte pode ser feita de qualquer coisa, talvez eu esteja no caminho de me tornar um “sem pátria”.


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