“Limpar os grafites é apagar a nossa memória”, afirma pesquisadora

João Doria apaga grafite. Foto: Reprodução Facebook
João Doria apaga grafite. Foto: Reprodução Facebook

“Doria: Pixo é arte”. Frases como essas irromperam nos muros de São Paulo em protesto contra as medidas recentes do prefeito João Doria (PSDB). No cargo há 26 dias, o tucano começou uma campanha contra os pixadores da cidade, descritos por ele como “agressores”.

Como parte do programa Cidade Linda, no último dia 14, funcionários da prefeitura jogaram tinta cinza nos grafites da Avenida 23 de Maio. Doria também afirmou que vai retirar todos os grafites na área conhecida como Arcos do Jânio, no centro da cidade. A medida já estaria rendendo polêmica dentro da própria gestão, segundo relatos recentes na imprensa. O secretário municipal de Cultura, André Sturm, estaria registrando obras consagradas para preservá-las.

Comentando o caso, o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Renato Cymbalista, defende que essa “visão de cidade limpa não vingará. O grafite e a pixação já fazem parte da paisagem de São Paulo”.

O grafiteiro Alexandre Órion também critica a medida, afirmando que se trata “de uma ação puramente midiática que cria a impressão de que o Doria está fazendo alguma coisa, enquanto os problemas de verdade, como as enchentes, não são resolvidos”.

Especialista em arte urbana, Lilian Amaral afirma que as intervenções urbanas devem ser consideradas patrimônio público. Isso não significa que “todo mundo vai se identificar com esse tipo de expressão. Nem todos gostam do Cristo Redentor no Rio ou do edifício do Banespa em São Paulo, mesmo assim eles fazem parte da cidade e de sua história. Limpar os grafites é apagar uma memória”, afirma.

Amaral ainda ressalta que a “cultura é um processo dinâmico, manifestações artísticas que causaram estranhamento no passado hoje são bem recebidas”. Isso aconteceu com o próprio grafite que, nos anos 1960, surgiu como uma forma de protesto. Artistas pioneiros como Alex Vallauri e Maurício Villaça foram presos por realizarem trabalhos sem autorização. Já hoje a pesquisadora acredita que “as pessoas se acostumaram a conviver com esse tipo de estética”.

Grafite dos artistas Os Gêmeos na Av. 23 de Maio. Foto: Divulgação
Grafite dos artistas Os Gêmeos na Av. 23 de Maio. Foto: Divulgação

Refletindo sobre a atual polêmica, Cymbalista afirma que o governo deveria ter dialogado com os artistas urbanos. O arquiteto se diz preocupado com a polarização “que contrapõe um projeto de uma cidade limpa ao de uma metrópole suja, no qual os pixadores e grafiteiros são associados a uma atitude indecente. O Estado deveria mediar os conflitos e não acirrá-los. Infelizmente, não é isso que está sendo feito”.

Mesmo contrário ao projeto do prefeito, Alexandre Orion alerta para os riscos da total institucionalização do grafite. “O que tem de mais delicado nesse processo é que eu tampouco gostava do que o Haddad havia feito na 23 de Maio. Acho complicado quando o Estado decide fazer curadoria, porque ele acaba naturalmente excluindo algumas manifestações artísticas. A pixação, por exemplo, acaba sendo preterida por ter menos aceitação do que os grafites e as artes coloridinhas”, provoca.

Para Amaral, a pixação é uma manifestação que “está associada aos grupos marginalizados que normalmente moram nas periferias e vem até o centro para deixar uma marca, chamando atenção para a sua própria existência”.

Ela acredita que parte da resistência do público a essa expressão se dá “porque as pessoas não conseguem decifrar essa narrativa e se sentem excluídas. Mas se a gente começar a pensar, muitos lugares da cidade são ocupados por símbolos bizarros como o do Rotary Club e ninguém fala nada. Quem autoriza? Por que uns podem e outros não?”

Diante de um contexto de acirramento das tensões, Órion garante que “as manifestações verdadeiramente questionadoras não vão deixar de acontecer. Com o apagamento, outras intervenções e memórias aparecerão. Mas eu te garanto que a pichação continuará na cidade. Quanto maior a repressão, maior a transgressão”.


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