Mundanamente mundanos: o enlaçamento dos campos imaginativos da ciência e da arte

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Pierre Huyghe, Untilled, 2011–12. dOCUMENTA (13)


Neste artigo
, eu gostaria de questionar como podemos (ou não) definir a prática artística e a pesquisa, e, ainda, sugerir como exposições com base na separação aceita de campos de investigação — entre as várias ciências físicas e sociais e a arte — poderiam ser reimaginadas para o propósito de uma ecologia mais abrangente e mundana, visando a coevolução e o florescimento de todas as formas de vida no planeta.

A razão mais óbvia para isso é que, enquanto a maioria dos artistas está interessada em lidar com o mundo em toda sua amplitude por meio de suas práticas artísticas, sociais e discursivas ‘amatórias’ já corporificadas, mesmo em suas mais introspectivas ou mais primorosamente trabalhadas obras de arte e projetos, muitos curadores, críticos de arte e organizadores de exposições e coleções não partilham dessa mesma abertura: em vez disso, a maioria desses profissionais ‘recorta’ o trabalho dos artistas ‘para fora’ do mundo em geral a fim de protegê-los, no que continua a ser um modo duchampiano nominalista: eles controlam a prática artística através de um sistema de sinais e de exibição, e dentro de uma genealogia e história da arte específicas, mesmo quando eles estão trabalhando com arte política. (‘É arte porque o artista e ‘eu’ a posicionamos sistemicamente dentro desse campo’, eles poderiam dizer.) Para mim, isso já não faz muito sentido, certamente não em termos de uma aliança (Susan Buck-Morss) mundana (Donna Haraway) de agentes humanos e não humanos (Bruno Latour), cosmopolíticos (Isabelle Stengers) interativos (Karen Barad) e conjugados (Haraway).

Na introdução de sua obra seminal de 1950, A História da Arte – que é ainda hoje um dos dois ou três livros de história da arte mais lidos (a partir de uma perspectiva eurocêntrica) dentre os escritos no século XX –, o historiador de arte britânico Ernst H. Gombrich (1909-2001) escreveu: ‘Realmente não há tal coisa chamada arte. Existem apenas artistas. Uma vez esses eram homens que pegavam terra colorida e esboçavam os contornos de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e projetam cartazes para painéis; eles fizeram e fazem muitas outras coisas. Não há mal nenhum em chamar todas essas atividades de arte, desde que tenhamos em mente que tal palavra pode significar coisas muito diferentes em diferentes tempos e lugares, e desde que percebamos que a arte com ‘A’ maiúsculo não tem existência’(1). O sociólogo, filósofo da estética e musicólogo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969) – conhecido desde a década de 1930 por seu louvor à vanguarda artística autônoma, com base em uma forma de ‘teoria crítica’, e por sua  crítica ao consumismo moderno e sua ‘indústria cultural’(2) – em sua obra tardia Teoria Estética de 1968, tomou o caminho ainda mais radical de minar o maior número possível de a prioris por meio de uma forma de pensamento crítico aberto e cético que chamou de dialética negativa, destinado a reconhecer a incerteza de qualquer forma de conhecimento constituída, incluindo o campo que chamamos de arte. Ele escreveu: ‘É autoevidente que nada a respeito da arte seria ainda autoevidente, nem a sua vida interior, tampouco a sua relação com o mundo e nem mesmo seu direito de existir (…) A arte deve voltar-se contra si, em oposição ao seu próprio conceito, e, assim, tornar-se incerta de si mesma, em sua fibra mais profunda (…) Porque a arte é o que ela se tornou, o seu conceito se refere ao que ela não contém. A tensão entre o que motiva a arte e o passado da arte circunscreve as chamadas questões de constituição estética (3).’

Essas duas referências me lembram de que o campo da arte contemporânea é historicamente determinado e não tão universal como os atuais mundos da arte – sobrepostos, paralelos, rivais e muitas vezes contrastantes – querem nos fazer acreditar. (Este pode ser o único terreno comum a todos esses diferentes mundos da arte – a ideia de que uma coisa chamada arte contemporânea existe.) Nem sequer deve ser tido como certo que já existiu, exceto como uma fantasia construída e extensão da arte moderna, nem que existirá para sempre. Estou ciente de que dentro da tradição vanguardista ocidental, o ‘fim da arte’ foi declarado um número de vezes, principalmente no final dos anos 1960 e 1970, pedindo a dissolução da ‘high-art’ em uma sociedade esteticamente generalizada e em uma vida revolucionária e comunista (Herbert Marcuse, Giulio Carlo Argan), mas o que estou discutindo aqui difere um pouco dessa proposição. A noção de arte contemporânea como uma série de objetos (seja material, seja imaterial; se esculturas, instalações, pinturas, performances, filmes e vídeos, ações ou gestos, sistemas transversais de envolvimento ou mesmo formas simbólicas e significativas da vida e pesquisa) que representam ou incorporam um momento contemporâneo (cum tempore/‘com o tempo’) no desenvolvimento de uma sociedade humana surgiu principalmente em meados do século XX, após o drama da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, e a bomba atômica. Era o auge da fenomenologia e do existencialismo; fomos capazes de apreender o tempo na forma de instantes, ocorrências, um fluxo de eventos únicos, originais, e às vezes catastróficos através do qual entendemos o nosso ‘ser’ como um hic et nunc (Sein und Zeit, Martin Heidegger diria).

A arte contemporânea se desenvolveu como conceito por volta de 1950, crescendo para fora da ideia vanguardista europeia de uma abolição radical, revolucionária da divisão entre arte e vida no ‘aqui e agora’ da experiência, eloquentemente descrito por Peter Bürger em sua Teoria da Vanguarda (1974). Tal conceito esteve presente como um tropo desde as artes do final do século XIX e os movimentos de Arte e Artesanato, e Alain Badiou descreveu-o como um dos principais conceitos subjacentes ao século XX em seu livro O Século (2005). No entanto, a ideia e o campo da arte contemporânea também emergiram da noção europeia aparentemente oposta, da autonomia da obra moderna de ‘high-art’, que começou a se desenvolver no século XVIII.  De acordo com Immanuel Kant (1724-1804), em sua Crítica do Juízo (1790), e Johann Winckelmann (1716-1768), entre outros, a arte é uma imitação sem propósito, ainda que intencional, da beleza da ‘natureza’ pelo ‘gênio criativo’; enquanto a ‘beleza natural’ é feita pela ‘natureza’, sem consciência ou intenção estética, e muitas vezes com um propósito. Para a burguesia em ascensão, a arte era o oposto, a necessária e contemplativa contrapartida aos produtos intencionais e úteis da indústria, mesmo quando os critérios estéticos fossem aplicados no projeto deste último. Isso também é semelhante à noção de Georg W. F. Hegel de que a arte oferece o caminho para a “liberdade estética”, que se relaciona com a nossa visão atual da arte como sendo também uma forma de brincar (Donald Winnicott), que redireciona radicalmente as regras de um sistema funcional de usar essas regras de forma diferente, sem considerar o seu propósito original.

Essa ideia começou com a mesma geração que criou a democracia parlamentar moderna e o Iluminismo; na minha opinião, ela surgiu porque eles eram uma sociedade de criadores (no início da industrialização e da economia de mercado) e, ao mesmo tempo, uma sociedade de pensadores que precisavam desenvolver sua esfera de ‘reflexão’ como um contraponto à produção. Eles precisavam de uma atividade não útil como um contraponto às atividades úteis. Assim, a atividade útil, em termos de lazer, é a atividade ‘não útil’, daí a ideia da autonomia da arte. Esta noção de autonomia da arte que realmente serve a um propósito importante – o de marcar e incorporar nosso tempo de lazer e contemplação – é geralmente aceita ainda hoje, especialmente entre os colecionadores, e está na origem de algumas definições de trabalho vigentes na prática artística. Por exemplo, a noção tautológica de que um artista examina como a percepção se transforma em conhecimento, utilizando-­se do assunto em si como meio de investigação (explorando cor através da cor, representação por meio da representação, o gesto através do gesto, a sociabilidade através de atividades sociais, e assim por diante), e transforma a arte em um tipo de filosofia prática incorporada que emprega uma ‘linguagem’ não verbal. Quando os filósofos examinam um fenômeno material físico, como um jarro, irão empregar palavras e linguagem, mesmo para lidar com o jarro como recipiente. Artistas explorariam a mesma pergunta criando um jarro e talvez até mesmo derramando algo dentro dele. Tanto a autonomia da arte moderna quanto a heteronomia da vanguarda ‘arte junto à vida’ são, no entanto, dois lados da mesma moeda moderna (com/sem propósito) e dependentes do apriorismo da natureza ‘especial’ de ‘liberdade estética’ e da aceitação de que um campo chamado Arte existe.


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