Está por toda parte a terra roxa. O solo ferroso das Minas Gerais insiste em manchar o branco dos cubos imaculados da arte contemporânea. Pavilhões inteiros despontam no meio da mata, como se brotassem roçando o inhame escuro, ervas pretas e verdes dos paisagistas, espelhos-d’água e lagoas artificiais.
Numa antiga fazenda do interior mineiro, o maior acervo de arte contemporânea a céu aberto do mundo faz colidir popular e erudito. A um custo de R$ 400 milhões, o Instituto Inhotim levou Doug Aitken, Matthew Barney, Chris Burden, Cildo Meireles, Hélio Oiticica e muitos outros à terra do congado.
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Num dia qualquer, carrinhos de golfe avançam mata adentro levando VIPs aos pavilhões mais remotos. Jardineiros plantam mudas ao sol ameno da primavera tropical. A reserva ecológica ao redor – são quase cem hectares – arremata com arestas verdes a vermelhidão da terra. Chefes estrelados já serviram seus pratos no restaurante do museu.
Inhotim é uma espécie de Disneyland das artes visuais. Cenário idílico, com silêncio de fazer inveja aos espaços museológicos mais cobiçados dos grandes centros, virou reduto onde artistas convidados fazem sair do papel seus projetos mais ousados, caros ou até então impossíveis.
Adriana Varejão instala sua obra num cubo de concreto armado em balanço sobre um espelho-d’água mais verde do que o mar. Doris Salcedo transforma um cubo branco em amarra prisional. Chris Burden lança vigas de aço num fosso imenso de concreto molhado. Doug Aitken cava 200 metros solo adentro para ouvir os sons da terra. Matthew Barney leva um trator do Carnaval de Salvador à sombra de duas redomas geodésicas. Mas as rodas desse trator chegam tingidas do vermelho mineiro. Todo o acervo parece traduzido a essa lógica do campo, a estética rural que às vezes abraça e às vezes sufoca um trabalho. Se parece fetichista guardar o monstro mecânico que Barney usou num filme sob uma pele vítrea construída para ele, a casinha de campo que abriga a instalação permanente de Rivane Neuenschwander vira complemento de peso às nuvens de isopor que se movimentam no teto.
Novos pavilhões inaugurados na ressaca da abertura estrondosa da última Bienal de São Paulo atestam esses valores campestres imiscuídos nos mais sofisticados anseios contemporâneos. Rirkrit Tiravanija transplanta seu Palm Pavilion, homenagem às construções pré-fabricadas de Jean Prouvé para colônias africanas, à mata de Brumadinho, rodeada de outras tantas espécies de palmeira. Monitores disparam rápidos os números das espécies aos visitantes mais incautos.
Dominique Gonzalez-Foerster, também do lado de fora da galeria, replica a estrutura de concreto armado dos pontos de ônibus mineiros numa grande clareira aberta na mata. Enverniza suas reflexões sobre o fracasso da arquitetura moderna, a coerção do movimento nas metrópoles e a falta de sentido que parece dominar o mundo com esse caldo local, a estética rasteira enaltecida a condição de arte no seio da floresta.
Remontadas num novo pavilhão, as Cosmococas de Oiticica e Neville D’Almeida parecem um tanto ofuscadas pelo impacto da natureza. Suas homenagens anfetaminadas às figuras de Marilyn Monroe, Jimmi Hendrix e Buñuel perdem a virulência das noites sem sono das metrópoles e ganham a leveza de um SPA isolado no campo. Crianças tiram os sapatos e pulam alegres pelos ambientes. Visitantes mais despojados tiram a roupa e mergulham na piscina noutra sala.
Inhotim parece provocar esse efeito. No campo, impossível não descer do salto. A elite da arte contemporânea se despe dos códigos e desfila feliz pelos gramados.
No dia da abertura dos novos pavilhões, Tiravanija passou horas tomando vinho à sombra das árvores. Márcia Fortes, da Galeria Fortes Vilaça, podia ser vista se espreguiçando sobre um banco de madeira. Marc Spiegler, da feira Art Basel, animava uma roda de conversas corado sob o sol mineiro. Não é exagero dizer que esse clima já pôs Inhotim na rota mundial do circuito contemporâneo de feiras e bienais.
Por trás desse cenário, três curadores fazem a seleção dos artistas no acervo, dois em Brumadinho, povoado a 60 quilômetros da capital mineira onde fica Inhotim, e outro em Nova York.
Mas é visível a influência de Bernardo Paz, o investidor que fez o pasto virar museu, na montagem dos projetos.
Paz é o homem alto, de olhos azuis e cabelo e barba brancos, visto vagando pelas alamedas florestadas de Inhotim. Ele mora no museu e parece ver uma extensão de si mesmo nas obras gigantescas que encomendou para o quintal de casa. É a megalomania visionária de um homem viciado em arte e na terra onde nasceu. Num texto do The New York Times, chegaram a comparar a loucura de Paz aos anseios dos barões americanos do século XIX, que fizeram fortuna tirando elementos da terra crua e depois higienizando tudo pela aquisição de obras de arte.
São antigos funcionários da fazenda de sua família que hoje trabalham de motoristas, faxineiros, alguns até técnicos do Instituto. É fato que a bonança de Inhotim se estende a projetos sociais, atendimento a escolas, capacitação de monitores e até uma orquestra local que começa a fazer turnês internacionais.
E na mistura de mato com vanguarda, Inhotim floresce à sombra de anseios individuais e com vontade de ser vitrine nacional para um projeto de arte de envergadura global. Se não for esquecido, ou tragado pelos centros de convenções, hotéis de luxo e campos de golfe ao redor, tem potencial para ser mais que um Xanadu tropical.
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