O formol contemporâneo

A Bienal de São Paulo?é a mais antiga, maior e mais importante mostra regular de artes das Américas. É também, para nós, umas das maiores “relíquias” dos anos do desenvolvimentismo, do sonho do País grande que quer entrar para o “primeiro mundo”. Ela é uma sobrevivente, portanto. Sobreviveu ao fim do sonho, à ditadura militar, às “décadas perdidas”, às crises internas profundas em seu sistema de direção (que recentemente frequentou tanto as colunas policiais quanto as colunas culturais), às patacoadas de alguns “curadores”. Afundou em um vazio para se repensar (e não o fez direito), reapareceu em grande estilo, apostando na politização da arte para se diferenciar do formalismo curatorial que a vitimou.

Assim, chegou à terceira idade. E justamente agora que o sonho do Brasil grande voltou, ela parece indicar uma nova referência. Como se sabe, essa nova referência é um certo mercado de feiras de arte renascido e para o qual temos um bom material a oferecer. Mas para isso é preciso fazer certas trocas.

Por isso não vemos, no pavilhão modernista, nada que remeta à trajetória dessa nossa relíquia, à reflexão do que fomos ou sobre a que ponto chegamos. Vemos, sim, uma troca com uma poderosa galeria escandinava privada e seu acervo contemporâneo, escolhido pelo dedo do curador de lá, que depois levará uma mostra de brasileiros para ser exposta, e comercializada, na Noruega. É isso que devemos esperar para as próximas décadas?
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Se for, vejamos. A mostra se intitula Em nome dos artistas. A “estrela” é Damien Hirst, o arquiteto do pós-mercado de cadáveres em formol vendidos a preço de ouro. A graça vem do cinismo neo-pop de Jeff Koons e suas “provocações” com Cicciolina ou Michael Jackson. Há também as fotos, belas e manjadas, de Cindy Sherman e a visualidade narcisista de Matthew Barney.

São várias obras (219), de apenas 50 artistas. O suficiente para você saber quem é quem, caso já não saiba, no atual estágio da arte contemporânea de mercado estabelecido. Há também muitas obras inadequadas para menores de 18 anos, mas sem perigo de polêmicas (pois o que tinha que chocar já se estabilizou). O segundo andar do pavilhão ficou quase exclusivamente dedicado a “jovens” norte-americanos e, no terceiro, além de Sherman, Barney e Nan Goldin, você pode ver o ótimo Félix González-Torres e as imagens sobre a mulher muçulmana de Shirin Neshat.

A Bienal de São Paulo faz uma homenagem ao “século americano”, justamente quando ele parece estar chegando ao seu fim. Não tenho motivos para acreditar que esta seja uma ideia da curadoria, mas isso pode ser visto em artistas “jovens” (juventude é uma mercadoria de extrema importância na atualidade, seja na arte ou nos ativos do mercado financeiro), como no multiculturalismo pop de Lizzi Bougatsos, nas “apropriações” do grafite de Dan Colen ou no colecionismo de fatos ordinários de Nate Lowman. Ou, ainda pior, no jogo banal de Matt Johnson, que usa objetos banais para imitar obras de arte “culta” e utiliza meios consagrados para recriar, como se fossem “obras de arte”, objetos triviais.

Boa parte da arte contemporânea norte-americana apresentada aqui é uma alegre refém dos cânones da também sessentona Pop Art. Será este o futuro da “velha” Bienal? A estabilização da forma pop em formol?


Francisco Alambert é professor de História Social da Arte da USP. Escreveu, com Polyana Canhête, Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores (Editora Boitempo, 2004)



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