Aprendemos a pensar que a arte recria, deforma ou repete diferencialmente a realidade,
seja ela a realidade perceptual, seja ela a realidade social a que chamamos mundo. A arte contemporânea, definida a partir das neovanguardas dos anos 1960, começa com o reconhecimento da impotência da verdade diante da realidade. Impotência que repete e retorna ao diagnóstico feito pelas vanguardas da década de 1930, ou seja, de que a realidade está perdida. O real é o nome desta realidade perdida, verdadeira obsessão, paixão e programa para as artes e para a crítica da subjetividade até hoje.
Para os formalistas trata-se de inventar uma nova linguagem capaz de apresentar o real destituído de toda ficção narrativa da verdade, o real como instante ou acontecimento puro. Para os críticos historicistas, o real pode ser aprendido por meio do exagero e da deformação de nossas formas sociais, capaz de inventar um novo olhar no qual a verdade se mostra como contradição.
As duas atitudes têm consciência de que as contradições inerentes ao processo produtivo e receptivo da experiência estética não podem mais ser incluídas em seu produto. Em outras palavras, tanto o artista quanto seu público e ainda seus críticos tornam-se cientes de seus lugares recíprocos à luz do sistema das artes, da indústria cultural e sua reprodutibilidade técnica. Portanto, a arte toma como tarefa emancipar-se tanto de sua condição de consumo, no quadro da realidade social que a torna possível, quanto de sua impotência em dizer a verdade sobre esta mesma realidade, da qual faz parte.
A psicanálise tem um nome para essa situação na qual a realidade se mostra divergente das estruturas de ficção que a tornam possível: trauma. O trauma tem essas duas faces pelas quais introduzimos a arte contemporânea. Ele presume uma fantasia entendida como estrutura de ficção, que delimita as condições de possibilidade da verdade, mas ao mesmo tempo ele envolve um acontecimento disruptivo, um fragmento imprevisto de real. Ou seja, a realidade para a arte contemporânea é realidade traumática porque produzida como verdade sem real e como real sem verdade. A psicanálise tem um nome para este trauma enquanto experiência social: mal-estar.
Hal Foster e Didi Huberman são os dois teóricos, ambos inspirados na psicanálise, que perceberam a estrutura traumática da arte contemporânea. Enquanto o primeiro tematiza a experiência perdida, entre simbólico e real, cujo paradigma é o luto, o segundo concentra-se na perda da experiência, entre imaginário e real, cujo paradigma é a materialidade da imagem. O ponto comum entre ambos é a ênfase na repetição, gramática fundamental do real para Lacan. A repetição cria arte em estrutura de sintoma, com suas paráfrases, citações e reescrituras, todas elas marcadas pelo retorno. Mas a repetição também cria arte em forma de ato, com seus cortes, dissenções e angústia. No Brasil, o modelo do luto e do retorno da verdade está bem representado por Nuno Ramos e Anna Maiolino, bem como sua ascendência que remonta à antropofagia cultural. O paradigma da materialidade da imagem, com sua potência reconstrutiva e com sua “forma fácil”, será encontrado em Tunga e Cildo Meireles.
Como o trauma segundo a psicanálise, o acontecimento estético contemporâneo também acontece em dois tempos. No primeiro, caminhamos da verdade da fantasia para o real que a excede. No segundo, vamos do inominável do acontecimento para um novo regime de verdade. Tanto no sentido regressivo quanto no sentido progressivo o trauma não é contemporâneo de si mesmo. Essa intransparência do contemporâneo a si mesmo escapa à maior parte dos críticos. Por isso o melhor ponto de partida para ler a arte de hoje é renunciar ao mito de que pertencemos a nosso próprio tempo, pois no trauma estamos depois e antes de nós mesmos. Por isso devemos procurar as raízes de “nosso” contemporâneo tanto na arte povera e no grupo Santa Helena, cuja descendência mais notável é Sergio Fingermann, quanto no neoconcretismo e nas tendências formalistas, cuja permanência aparece em Rivane Neuenschwander.
O problema do momento em que nos encontramos é a retomada do ponto de articulação impossível entre essas duas tendências que definem nossa paixão contemporânea pelo real. O real não apenas como intrusão positiva desse elemento obsceno e perturbador, que não cessa de não se inscrever, mas também como elisão negativa que desestabiliza nosso olhar de sua soberana experiência de apossamento da realidade. O mal-estar nas artes plásticas brasileiras não deve ser visto apenas como efeito colateral
de nossa integração ao sistema das artes ou de uma geração de artistas formados para o mercado, segundo um capitalismo à “brasileira”, mas também como descompasso entre o Brasil e sua própria capacidade de representar-se para além de si mesmo.
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