Constatando o menosprezo da arte contemporânea brasileira pela presença indígena no País, Moacir dos Anjos atribuiu recentemente ao processo colonial as razões de tal descaso. Para ele, a preocupação estaria restrita à produção de um pequeno grupo de artistas (Cildo Meireles, Anna Bella Geiger, Claudia Andujar, Miguel Rio Branco e Bené Fonteles, além de poucos jovens como Paulo Nazareth), no qual o curador encontra “o núcleo de uma arte brasileira contemporânea índia”, isto é, “uma arte que seja afetada por uma guerra de ocupação que está longe de ser terminada e que dela participe, com solidariedade e empatia, a partir de suas próprias capacidades” (“Arte índia”, revista Zum, 9/6/2016). Mesmo que pouco presente na produção contemporânea, a “questão indígena” – categoria tão politicamente importante quanto redutora – ainda assim norteou alguns projetos curatoriais de destaque na cidade de São Paulo.
O interesse do sistema visual ocidental pelos seus “outros” é tão antigo quanto o próprio surgimento da arte moderna, além de ser tematizado por exposições polêmicas como a Magiciens de la Terre (Paris, 1989). Associada a uma tentativa de diálogo com as ciências humanas, a preocupação esteve presente em exposições de peso, como a última Documenta (2012) e ao menos duas das últimas edições da Bienal de São Paulo (2012, 2014). Mas foi nos últimos dois anos que ela se mostrou mais fértil por aqui, como atestam o projeto do próprio Moacir dos Anjos (A Queda do Céu, Paço das Artes, 2015), a exposição Histórias Mestiças (Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, Instituto Ohtake Cultural, 2015) e o 34º Panorama da Arte Brasileira (Aracy Amaral e Paulo Miyada, MAM, 2015-2016), além da atual edição da Bienal de São Paulo.
Trata-se de um espaço significativo, que aponta para um esforço fundamental de discussão de assuntos marginalizados, mas ainda assim marcado por equívocos que pedem reflexão. Ao escrever sobre os propósitos de Histórias Mestiças, Adriano Pedrosa observa com pertinência que a imposição da noção de objeto de arte corresponde a uma “europeização do mundo”, questionada desde os estudos pós-coloniais. O curador se refere, ainda, aos processos correntes de invenção de museus pós-etnográficos, que devem considerar “cada artefato como um gatilho para conceitos futuros” capazes de indicar um novo modo de disposição dos espólios do imperialismo. É por isso que o projeto não pretendia ser uma “história da mestiçagem, mas mestiçagem de muitas histórias” (Histórias Mestiças, Editora Cobogó/ Instituto Tomie Ohtake, 2015).
Movidos por uma preocupação mais tradicional, os curadores do 34º Panorama da Arte Brasileira pretendiam reavaliar a história da arte brasileira a partir dos objetos atribuídos às populações sambaquieiras, que ocupavam a costa do País entre 4.000 e 1.000 anos a.C. Trata-se de populações distintas das atuais ameríndias, mas com uma história também ignorada e pouco valorizada no Brasil. Os artistas selecionados (Cao Guimarães, Cildo Meireles, Miguel Rio Branco, Erika Verzutti, Berna Reale, Pitágoras Lopes) explicam os curadores, “foram instados a produzir novos trabalhos que refletissem o Brasil de hoje, quiçá inspirados no de ontem, no que ele tem de inapreensível enquanto conceito, assim como telúrico enquanto presença” (http://mam.org.br/exposicao/34panorama/, acesso em 16/08/2016).
A contraposição de obras contemporâneas com peças arqueológicas apresentava impasses diversos, ancorados na noção de objeto estético e nas formas de classificação das coisas dos outros pelo processo colonial. Os curadores do Panorama não souberam – ou não quiseram – transformar as emblemáticas vitrines arqueológicas nas quais estavam as peças, contrapostas às produções contemporâneas por uma linha vazia que remetia à incômoda divisão nós/eles. Do lado de lá, seguiam projetos que oscilavam entre a incapacidade de engajamento com o problema (Berna Reale) e outras propostas mais interessantes. É o caso de Cao Guimarães, que recupera o trabalho dos atuais catadores de conchas na região de Santa Catarina, entrevendo uma relação outra entre meio, pessoas e coisas que remete, pelo contraponto atual, àquele outro tempo em que os zoólitos foram produzidos. Mas o discurso curatorial não deixava de se valer de uma perspectiva temporal linear, que situa povos praticamente desconhecidos em nossa narrativa histórica, além de atribuir às suas produções a condição supostamente universal de objeto de arte.
São muitas as questões deixadas em aberto por tais projetos. Quando se evoca uma mestiçagem de histórias, não faltaria justamente a presença mais efetiva dos critérios e conceitos alheios? Como mobilizar pensadores e criadores ameríndios – mas também de outras matrizes e inserções sociais – para que participem mais efetivamente da construção de narrativas pelas quais costumam ser compreendidos? Como lidar, também, com as consequências da circulação de produções e ideias indígenas (desenhos, artefatos e grafismos associados à ayahuasca, por exemplo) pelo ambiente voraz da arte contemporânea?
Em relação ao louvável apelo político do projeto A Queda do Céu ( Moacir dos Anjos), por sua vez, cabe perguntar: em que medida traz à tona as complexas categorias de pensamento expostas pelo xamã yanomami Davi Kopenawa em seu livro, do qual a exposição empresta o título? Não faltará à crítica política uma dimensão também conceitual, que pensadores ameríndios certamente seriam capazes de oferecer? Em A Queda do Céu, obra já clássica recentemente traduzida do francês pela Companhia das Letras, Kopenawa produz uma contundente e original crítica aos brancos, às suas instituições de arte e obsessão por objetos. Como levar mais a sério tais considerações?
Os dilemas em questão se referem às incompreensões derivadas do encontro trágico entre mundos, que tem como resultado não apenas a destruição física e territorial imputada aos nativos, mas o obscurecimento de suas formas de pensar e de se exprimir. Agora, entretanto, o desafio se amplia para a incerteza de um mundo futuro, comprometido pela guinada ultraconservadora mundial que só tenderá a agravar as crises climáticas e suas decorrências. Se o problema ultrapassa as divisões entre nós e eles já aqui comentadas, é porque nos obriga a descobrir o que há por trás da categoria “indígena”: uma multiplicidade de mundos e seus próprios modos expressivos, regimes conceituais, formas duradouras de relação com o que costumamos chamar de natureza e estratégias diversas de resistência.
Aprender com esse conjunto de práticas e conhecimentos se mostra fundamental quando o sistema capitalista mundial dá sinais de colapso, quando a própria possibilidade do humano moderno, ancorado em suas certezas autocentradas, é colocada em xeque por alterações sistêmicas irreversíveis pelas quais passa o planeta. Em seus Dias de Estudo (seminários que fazem parte dos programas públicos da Bienal), a 32a Bienal de São Paulo se mostrou atenta a tais questões e à diversidade de parceiros capazes de encaminhar possibilidades de discussão. Quais serão, entretanto, os seus resultados finais? Como pensar, a partir daí, em uma arte contemporânea mais voltada para sua capacidade de produzir encontros e conexões entre distintas formas de pensar?
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