A política na mesa

“Eu nunca me considerei um ativista. Mas quando comecei a falar de alimentação em meu trabalho, ele automaticamente se tornou político”. A frase, do artista alemão Uli Westphal, sintetiza a mostra Vestígios, em cartaz na galeria Rabieh, em São Paulo. Com curadoria de Tainá Guedes e Daniel Rangel, a exposição aborda a relação entre o homem e o alimento, a partir da ótica do desperdício. São apresentadas obras de artistas brasileiros, como Ayrson Heráclito e Lenora de Barros, e estrangeiros, como Klaus Pichler. Ao longo da mostra também haverá atividades paralelas desenvolvidas por chefs de cozinha. Edinho Engel, por exemplo, criará pratos inspirados nas obras da exposição.

A união entre arte e comida marca a própria trajetória da curadora Tainá Guedes. Filha do artista Omar Guedes, Tainá começou desde cedo a atuar no meio cultural. Aos 17 anos tornou-se sócia do famoso restaurante japonês Nakombi, no qual montou exposições e eventos para promover a cultura nipônica. Com o intuito de entender um pouco mais sobre o ramo, estudou Gastronomia e, logo após se formar, foi para Berlim. Na capital alemã, aproximou-se do food activism, movimento que defende a alimentação como uma ferramenta política, social e ambiental, estimulando o consumo de produtos orgânicos e a valorização dos produtores locais. Para colocar essas ideias em prática, Tainá fundou a Entretempo Kitchen Gallery, a primeira galeria com cozinha integrada.

Esse percurso levou a curadora a perceber que a questão do desperdício era um problema global que precisava ser debatido a partir de inúmeras linguagens, sendo a arte uma das mais potentes. Segundo estudos da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, cerca de 1/3 da produção mundial de alimentos é jogada fora. Ao contrário do que possa parecer, no mundo contemporâneo, fome – relacionada à falta, e desperdício – associado à sobra, são dois lados da mesma moeda. “Precisamos pensar no nosso poder de transformação enquanto consumidores. Por exemplo, o consumo de carne é o principal motivo de desmatamento da Amazônia. As pessoas advogam pela preservação da Amazônia, mas continuam comendo carne. É uma contradição que precisa ser repensada”, afirma a curadora. Sobre o tema, ela cita a série Da compaixão cínica, de Rodrigo Braga, presente na mostra. O trabalho é composto por quatro imagens nas quais o artista relaciona partes de bichos, vendidos em feiras, com membros do corpo humano, criando uma mimese que questiona a separação homem/animal.

A comida já foi utilizada como forma de expressão por diversos artistas contemporâneos. O alemão Joseph Beuys, por exemplo, empregava materiais como gordura, mel, leite e vinagre em seus trabalhos. Em sua famosa instalação Capri Battery (exposta recentemente na galeria Bergamin & Gomide em São Paulo), uma lâmpada é plugada a um limão. Andy Warhol imortalizou as latas de sopa Campbell, símbolo da cultura de massa norte-americana. Segundo Tainá: “A arte e a alimentação são universais, todos nós precisamos comer e nos expressar. Combinando esses dois ingredientes, você tem uma receita boa para atingir e sensibilizar as pessoas”.  O curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado, integra a mostra justamente por seu impacto. Lançado em 1989, o filme acompanha a trajetória de um tomate, desde sua plantação até ser jogado fora, evidenciando os mecanismos da sociedade de consumo. A obra fez grande sucesso, sendo até hoje exibida em escolas.

Na obra Mutatoes o artista alemão Uli Westphal registra uma coleção de frutas e vegetais que são proibidas de serem comercializadas por desviarem dos padrões estéticos. São batatas, cebolas e cenouras que continuam possuindo o mesmo sabor, mas que deixam de serem colhidas devido a sua aparência pouco convencional. O artista apresenta uma série de fotografias que revelam as diferentes texturas, cores e formatos desses alimentos. Segundo Westphal, há uma enorme diversidade de vegetais que está em vias de extinção em prol de produtos totalmente industrializados.  

O alemão investiga ainda os truques psicológicos e as ilusões de ótica adotadas para vender alimentos. “Cada detalhe do supermercado é previamente arquitetado para tirar o máximo de dinheiro possível do consumidor. Eles controlam a música que está tocando, o lugar nos quais os produtos são dispostos, a luz, dentre muitas outras coisas”, afirma. O artista criou um Guia de Bolso da Psicologia de Supermercado, que é distribuído na exposição. No folheto, são explicitadas algumas táticas adotados pelos estabelecimentos, como o tamanho cada vez maior dos carrinhos, que faz com que os clientes coloquem mais alimentos dentro dele, e a posição de produtos açucarados ao nível dos olhos das crianças. Em outro trabalho, intitulado Ultraviolet Schnitzel (2011), o artista apresenta três displays com um pedaço de carne dentro. Luzes com cores diferentes vão se alternando e modificando a aparência do alimento, que passa de apetitosa a repulsiva.

Vestígios
fica em cartaz até 30 de julho. Tainá afirma que o objetivo é que, com o fim da mostra, a discussão continue em outros lugares e com diversas linguagens. “Uma obra de arte pode provocar inúmeras reações nas pessoas. Mas claro, gostaria que quem saísse da exposição refletisse sobre os impactos de alguns dos seus hábitos cotidianos e o nosso poder de mudança”, afirma a curadora.

Serviço – Vestígios
Até 30/07
Galeria Rabieh – Al.Gabriel Monteiro da Silvia, 147. São Paulo-SP
(11) 3062-7173
galeriarabieh.com.br


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