Portugal depois da crise

Fachada do museu de arte, arquitetura e tecnologia, projetado pela inglesa Amanda Levete. Foto: Olívia Pedroso
Fachada do museu de arte, arquitetura e tecnologia, projetado pela inglesa Amanda Levete. Foto: Olívia Pedroso

Conhecido mundo afora por seu passado glorioso, sua cultura tradicional e seus monumentos e instituições dedicadas à arte antiga, Portugal começa a se consolidar, de modo acelerado nos últimos anos, também como polo global de arte contemporânea. Lisboa não é mais apenas a cidade dos museus da Marinha, com seus navios, dos Coches, com suas carruagens, da Água, com seu aqueduto, e do Azulejo; é também, desde 2016, a cidade do MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia), de uma edição lusitana da espanhola ARCO (Feira Internacional de Arte Contemporânea), da recém-inaugurada BoCA (Biennial of Contemporary Arts) e de uma variedade de mostras e eventos realizados por dezenas de jovens galerias.

“É um contexto muito interessante. Portugal está saindo de uma crise econômica que nos sugou muita energia, nos enfraqueceu muito, e agora parece que vivemos uma necessidade de voltar a construir, produzir, criar algo”, afirma John Romão, diretor artístico da eclética BoCA, bienal de artes contemporâneas que em sua primeira edição reuniu, entre março e abril, nomes como os dos artistas Hector Zamora e Tania Bruguera, do encenador Romeo Castellucci, da dançarina e performer Cecilia Bengolea e do coreógrafo Jerôme Bel. “Acho que tanto nas artes plásticas quanto no cinema, na dança, na música e em outras áreas temos nesse momento muitos jovens a se afirmar. E, junto a isso, certa explosão da visibilidade no exterior.”

O MAAT, aberto parcialmente em 2016 e em sua totalidade em março deste ano, é provavelmente o símbolo maior desta efervescência artística no país. Sediado em dois grandes espaços à beira do rio Tejo, uma central termoelétrica desativada e um arrojado edifício projetado pela inglesa Amanda Levete, o museu propõe conexão e diálogo horizontal entre diferentes áreas do conhecimento.

“O fato de um museu ser dedicado à arte, à tecnologia e à arquitetura já o faz singular, porque reúne três disciplinas que não estão sempre ligadas”, explica o diretor da instituição, Pedro Gadanho. “É um museu de arte contemporânea, mas onde a arquitetura, a cultura urbana e os impactos que a tecnologia têm no nosso dia a dia são usados como uma espécie de enfoque dentro do campo maior da arte. Isso nos permite focar em artistas que produzem uma reflexão mais direta sobre aquilo que está acontecendo à nossa volta hoje.”

Com programação intensa e mostras individuais e coletivas, em menos de um ano o MAAT já expôs trabalhos do casal Eames, de Clara Ianni, Alexander Brodsky, Wolfgang Tillmans, Lourdes Castro, Francis Alÿs, Carlos Garaicoa, Pierre Huyghe, Olafur Eliasson, Gordon Matta-Clark e muitos outros.

Até o fim de abril, Ordem e Progresso, uma grande instalação do mexicano Hector Zamora, ocupou a enorme Galeria Oval do museu, espaço de maior destaque da instituição, que abrigará sempre obras site specific. Resultado de uma performance realizada no próprio espaço, com a destruição de barcos trazidos de vilas tradicionais portuguesas, a obra parecia evocar justamente a memória histórica lusitana, colocada em contraste com a contemporaneidade de um dos mais novos espaços expositivos do país.

Assim como no trabalho de Zamora, um estreito diálogo entre as obras e o lugar caracteriza boa parte das mostras do MAAT, realçando a preocupação de interligar arquitetura, arte e tecnologia não só no conceito, mas também na prática expositiva. “Eu vinha de anos de trabalho na curadoria do MoMA, que é o museu típico da organização moderna da arte, dividida em várias mídias. E lá já se falava dessa compartimentação e da necessidade de romper com ela, mas isso era muito difícil em um museu que havia sido criado sobre essa base”, conta Gadanho. “Aqui se torna mais fácil fazer esse tipo de ligação, porque é um museu que não tem passado e não vive dessa formatação do mundo da arte. Tínhamos uma grande liberdade e um grande interesse em usá-la, não para misturar coisas de forma aleatória, mas para ter os artistas olhando mais para outras áreas e também colocar artista e arquiteto no mesmo nível intelectual, ou seja, ambos como produtores culturais com capacidade para falar sobre o que está acontecendo. Isso permite diluir as fronteiras e não criar guetos.”

Uma bienal híbrida

Romper fronteiras e misturar áreas do conhecimento é também o objetivo da BoCA, bienal que levou a variados espaços de Lisboa e do Porto exposições, instalações, performances, shows, festas, teatro e dança – e, por vezes, obras híbridas entre todas elas. Para o diretor, mais do que de uma vontade inovadora, a concepção do projeto partiu da percepção de que a arte contemporânea já é, em si mesma, diversa e múltipla. “Os artistas já trabalham assim, operam de modo cada vez mais plural nos formatos, mídias e territórios que utilizam”, afirma Romão. “E o público está cada vez mais permeável a essas novas experiências estéticas.”

Na programação, portanto, a BoCA abriu espaço para uma performance de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira inspirada em palhaços de circo, uma instalação de Rodrigo Garcia criada especialmente para uma sala do Museu de Arte Antiga, um campeonato de fingerboard (mais conhecido como skate de dedo) realizado em obstáculos projetados por jovens designers portugueses, uma exposição realizada no palco de um teatro e uma grande festa com música eletrônica e performances. “Interessava estabelecer relações entre instituições culturais diferentes e entre territórios artísticos diversos, trabalhando de modo horizontal, transversal, não dando primazia a uma arte ou outra. Consideramos, por exemplo, que uma festa é tão importante quanto uma conferência ou uma exposição de artes plásticas e que em qualquer experiência dessas o público pode sair de algum modo transformado.”

Nesse ponto, Romão reafirma uma busca por democratizar o acesso à arte contemporânea, tirando o “couro de incompreensão” que, por vezes, a cobre. Aproveitando o momento efervescente da vida urbana portuguesa, com as ruas cheias de gente na capital e no Porto, o diretor considera que a propagação das atividades da BoCA por diferentes espaços ajuda também a aproximar os “espectadores acidentais” – aqueles que, sem procurar, se deparam com as obras e acabam por vivenciá-las. “Enquanto as políticas globais de hoje tendem para uma ideia de fechamento e de intolerância, com uma ascensão da direita e com direitos e liberdades sendo ameaçados, a arte pode contrabalançar com a abertura, com o diálogo, com ar fresco. Nesse sentido, os espaços para a arte são como bombas de oxigênio. Não são espaços de julgamento, não nos obrigam a tomar partido e a dar respostas exatas, mas são abertos à reflexão e à sensibilidade. São necessários, urgentes, sagrados.”

Edifício da Cordoaria Nacional, que recebe  este ano a segunda edição da Arco Lisboa. Foto: Rodrigo Gatinho
Edifício da Cordoaria Nacional, que recebe este ano a segunda edição da Arco Lisboa. Foto: Rodrigo Gatinho

Crise econômica e ARCO

Se MAAT e Boca são dois casos de grande destaque no panorama português, estão longe de serem os únicos. Enquanto dezenas de mostras estreiam semanalmente nas instituições, novas galerias portuguesas abrem as portas, assim como filiais de casas estrangeiras. Espaços para residências artísticas se multiplicam em várias cidades do país, e não parece ser à toa que Lisboa foi escolhida Capital Ibero-americana de Cultura em 2017.

Paradoxalmente, muitos enxergam essa efervescência no cenário artístico como um tipo de consequência colateral positiva da crise econômica que desestruturou o país a partir de 2011, após a crise financeira global de 2008.  “A verdade é que a crise nos últimos anos também criou oportunidades de negócio no país, por conta de aluguéis baratos e da disponibilidade de espaços grandes que já não havia em outras cidades europeias. E isso fez com que artistas e galerias percebessem que era um bom lugar para se instalar”, explica Carlos Urroz, diretor da tradicional feira ARCO Madrid e agora de sua versão lusitana, a ARCO Lisboa.

Gadanho segue a mesma linha: “Com a crise, houve muita gente saindo do país, por falta de oportunidades, mas, para aqueles que ficaram, houve também uma necessidade de se reinventar e criar outro tipo de atividade criativa. Lisboa era também uma cidade muito barata, o que atrai artistas e gente inventiva. Acho que a combinação desses dois fatores criou uma nova efervescência, considerando as culturas mais jovens, que produzem certo equilíbrio com o que é a oferta cultural mais tradicional da cidade”.

Foi com a percepção desse ambiente criativo e a constatação de que a economia começava a se recuperar – o PIB voltou a crescer e o desemprego que atingiu 17% em 2013 está hoje em 10% – que a ARCO decidiu realizar sua primeira edição em Lisboa em 2016. Com a presença de 45 galerias nacionais e estrangeiras, a feira teve bons resultados no ano de estreia. Todas as casas retornam neste ano ao evento, que apresenta um crescimento de 30% na sua segunda edição, com um total de 58 galerias participantes – incluindo as brasileiras Vermelho, Baró, Anita Schwartz e Jaqueline Martins.

Para Urroz, Lisboa reúne todas as características para ser um polo de destaque da arte contemporânea, “primeiro porque tem uma cena local muito interessante, mas também por causa de sua capacidade de atrair gente de todo o mundo. Há grandes galerias e instituições de peso, como as fundações Calouste Gulbenkian e Serralves, a Coleção Berardo e o MAAT. O que falta ainda é uma recuperação do colecionismo da classe média, algo que existiu, mas retraiu com a crise. E acho que a feira pode ajudar nesse sentido”.

Assim como os espanhóis da ARCO, artistas, galeristas, colecionadores, diretores de museu e curadores de vários cantos do mundo também passam a olhar com mais atenção para Portugal e seu intenso desenvolvimento cultural. “Em parte, Portugal continuou a ser como um lugar a se descobrir até muito recentemente”, afirma Gadanho, relembrando que o país permaneceu quase isolado até o fim da ditadura fascista em 1974 e sofreu ainda grandes consequências – econômicas e sociais – nas décadas seguintes. “E acho que o que está acontecendo, finalmente, junto a um boom turístico, é uma aproximação de novas camadas de pessoas com outro tipo de interesse pelo país, por sua cultura.”

O interesse de instituições brasileiras pela arte contemporânea portuguesa é outro exemplo notável desse quadro. Na 32a edição da Bienal Internacional de São Paulo, em 2016, foram apresentadas obras de cinco artistas portugueses – Lourdes Castro, Carla Filipe, Gabriel Abrantes, Grada Kilomba e Priscila Fernandes –, de um total de 81 participantes.

O número salta aos olhos não apenas por ser maior que o de artistas de qualquer outro país europeu, mas também quando é feita comparação com as duas edições anteriores do evento, que receberam apenas um convidado português cada. “Tenho percebido recentemente uma forte produção de jovens portugueses”, explica o alemão radicado no Brasil Jochen Volz, curador da última Bienal e anunciado o próximo diretor da Pinacoteca do Estado. “Durante o processo de concepção da 32a edição, decidimos fazer uma viagem para Lisboa e Porto, onde de fato encontramos uma cena extremamente interessante.”

Também no ano passado, a megaexposição Portugal, Portugueses reuniu no Museu Afro Brasil obras de 48 artistas lusitanos, na maior mostra de arte contemporânea portuguesa realizada no País. Entre os convidados, nomes cada vez mais presentes em grandes exposições internacionais, como Gonçalo Pena, Helena Almeida, Joana Vasconcelos, Julião Sarmento, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Rui Calçada Bastos e Vasco Araújo. Como analisa Romão: “Parece que há na arte portuguesa alguma coisa de especial, de particular, algo a ser exportado”.

Visitante passeia na primeira edição da Arco Lisboa, em 2016. Foto: Rodrigo Gatinho
Visitante passeia na primeira edição da Arco Lisboa, em 2016. Foto: Rodrigo Gatinho

O risco da “barcelonização”

O contraponto ao cenário em ebulição são as tradições muito antigas e de difícil trato. “Há fenômenos com os quais quem vive aqui se defronta que têm a ver com burocracia, excesso de regulamentação, o peso político das velhas famílias e uma economia bastante fechada, às vezes pouco receptiva aos mais jovens”, explica Gadanho. “Isso tem a ver com uma cultura tradicional que se encontra também em lugares como Viena ou Roma, cidades muito antigas onde há poderes instalados há séculos, difíceis de contrariar. Felizmente, as pessoas conseguem romper com isso e fazer novos negócios. Ainda mais agora que há um interesse da cidade em estimular a vinda de empresas mais tecnológicas.”

O contingente de turistas e de novos moradores também cria conflito com os antigos cidadãos portugueses. Reclama-se, por exemplo, do decorrente estímulo ao setor imobiliário, com aluguéis em rápida ascensão, e da gentrificação mudando o perfil de antigos bairros. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, o número de moradores estrangeiros em Portugal subiu 10% em 2015 e 12,7% em 2016 – aumento seis vezes maior do que a média europeia no ano. “Espero que não trilhemos um caminho como o de Barcelona, que chamo de efeito de ‘barcelonização’, em que a cidade se volta toda para os turistas e esquece sua própria comunidade e seus interesses. Mas vejo que estão vindo morar em Portugal muitas pessoas com grande interesse cultural. Há também condições para uma nova economia criativa na cidade, o que permite um efeito de transformação de maior duração do que apenas o do turismo”, diz Gadanho.

O diretor do MAAT ressalta ainda o trabalho de reabilitação urbana cuidadoso que tem predominado no país, capitaneado por uma classe arquitetônica bastante qualificada. “Não podemos esquecer que, antes ainda de a arte contemporânea dar o que falar, a cultura arquitetônica é talvez aquela que começou a ser mais reconhecida mundo afora, por causa de Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura, entre outros. É a primeira grande exportação cultural portuguesa em tempos mais recentes.” Agora, pois, chegou a vez da arte contemporânea. 


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