Quando as batucadas cessam, ela diz: It’s over! E tudo é silêncio

STILL_Answer_Me_low_7
“Answer me”. Anri Sala

STILL_Answer_Me_low_7A mostra Momento Presente traz ao Brasil conjunto significativo da obra lírica e política do artista albanês Anri Sala. É um total de 15 trabalhos, dele que é um dos nomes mais expressivos da arte contemporânea, cuja trajetória de sucesso em festivais de cinema e bienais revelou ao mundo um olhar em descompasso com a perspectiva acelerada do mundo ocidental. Formado em Artes na Albânia (Academia Nacional de Artes de Tirana) e na França – passou pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs, em Paris, e pela incensada Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains –, o artista preserva a sensibilidade de quem cresceu em um mundo isolado da frenética dinâmica capitalista, o que lhe concedeu uma peculiar mirada sobre nosso tempo, seja do ponto de vista do indivíduo, seja do da sociedade.  

A mostra de Anri Sala estrutura-se em pleno e íntimo contato com a arquitetura modernista da mansão dos Moreira Salles (algumas obras foram pensadas especialmente para lá), hoje um espaço para a preservação e a difusão da fotografia, da música, da literatura e do cinema.  Tal ambiente, outrora doméstico, impregnado da memória e do passado daquela família, está sempre a reverberar os ecos afetivos do documentário Santiago, realizado por João Moreira Salles sobre o mordomo que acompanhou sua infância naquela casa. Não poderia haver melhor lugar para Sala exibir seu trabalho no Rio de Janeiro; em última análise, sua obra trata justamente da delicada relação que o homem estabelece com o tempo e também com o espaço, sejam reais, sejam ficcionais ou um misto de ambos.

Há na obra desse artista albanês algo de profundamente inquietante, perturbador. Seus filmes justapõem e sobrepõem planos afetivos, sonoros e imagéticos em um exercício de articulação semântica tão sutil quanto autônomo, mesmo porque resulta da montagem intuitiva promovida pelo espectador ao buscar dar sentido ao descompasso entre o que é visível na tela e o que é projetado na memória, entre o que é audível através da caixa de som e o que é marcado pelo compasso das batidas do coração.

Em suas obras quase “silenciosas” – em que pese a presença constante da trilha sonora –, o tempo parece dilatar-se, pondo em marcha um fluxo de sentimentos e imagens interiores inacessíveis sempre que nos predispomos a ordenar o discurso no torturante afã de produzir algum sentido estritamente lógico. Pois o sentido nos filmes de Sala está sempre em algum lugar remoto, tal qual nossa memória, justo a ponto de nos escapar, embora sempre retorne, ciclicamente, tal qual as badaladas. Esse espaço mental entre a fantasia e a realidade, esse colapso do sentido que emana de sua obra, opera em nossa psique uma espécie de transe, alcançando, quem sabe, a nota hipnótica que resgata o passado ao passo que põe o tempo presente em suspensão, investindo-o de uma potência constante, de uma latência que ora concilia a alma e a razão, ora nos lança em um abismo de profunda melancolia. Entre o plano afetivo e o político, entre a esfera pública e a privada, Sala nos defronta com espaços de ausência, habitados por espectros, personagens quiçá ancestrais, presenças extintas ou mesmo inventadas. Seriam fantasmas reais, fantasmas do tempo presente?

Should I Stay or Should I Go
Em Intervista (1999), seu primeiro filme, Anri Sala recorre ao passado a fim de realizar um documentário sobre os embates políticos e afetivos de uma jovem militante comunista, sua mãe, cujas motivações utópicas acabaram solapadas pelo processo histórico que viria a derrubar o muro de Berlim e pulverizar uma realidade de tintas ficcionais, assim encerrando um bloco de ditaduras tão “surdas” quanto “mudas”, tal qual a entrevista que o artista recupera dos rolos 16 mm encontrados por acaso nos pertences de sua família. A sequência de imagens em preto e branco, desprovidas de som, revelam uma bela mulher na casa dos 30, concedendo uma entrevista cujo teor pode tão-somente ser intuído em função do contexto em que ocorre: um congresso do partido comunista na década de 1970, na Albânia. Movido pela curiosidade em descobrir quais pensamentos embalariam sua mãe àquela altura da vida e da história de seu país, Sala decide buscar ajuda de deficientes auditivos capazes de fazer a leitura dos lábios, assim devolvendo às imagens o sentido de que careciam e confrontando a jovem idealista com seu passado nem tão remoto, ainda que parcialmente apagado da memória.

Esta primeira obra audiovisual de Sala lhe rendeu diversos prêmios e deixou marcas indeléveis em sua trajetória artística. Muito embora seus filmes posteriores sejam bastante diversos deste em termos estéticos e narrativos, é notória a recorrência de alguns temas nas obras que se seguiriam: a ambivalente relação travada pelo homem com o tempo, com as marcas da história, com a memória e com a perda de sentido em seu curto e frágil contato com aquilo que chamamos de realidade. O som, ou a ausência dele, permeia suas imagens e narrativas, pontuando o lapso entre percepção e sentido.

Além de Intervista, algumas outras obras merecem destaque nesta mostra que mescla vídeos, instalações sonoras, fotografias e objetos de diferentes períodos da produção do artista.  Entre elas, vale destacar Le Clash (2010) e Tlatelolko Clash (2011), trabalhos que remetem um ao outro, o primeiro filmado em um anfiteatro abandonado de Bordeaux, e o segundo nas ruínas de um templo asteca na Cidade do México. Ambos nos fazem imergir em paisagens insólitas, onde a arquitetura – outra constante na obra de Sala – desempenha um papel central, reforçando a aparente solidez do passado e de suas estruturas vis a vis com a imaterialidade do pensamento, das emoções e dos propósitos que impulsionam os sujeitos da história em sua breve passagem pelo mundo. Nos dois filmes, personagens vagam pelas cidades executando ou buscando executar uma mesma composição em realejos e numa caixa de música, a qual posteriormente descobrimos se tratar de Should I Stay or Should I Go, da banda The Clash. O descompasso entre os instrumentos obsoletos utilizados pelos personagens e os sons por eles reproduzidos a partir da música da banda punk britânica só faz reforçar a atmosfera de anacronismo que lança o espectador a uma dimensão atemporal, na qual a realidade cede espaço à fabulação. Ficamos ou partimos, para onde estamos indo?

Em Answer me, filme de 2008, um casal encontra-se nas ruínas da estação de escuta e espionagem norte-americana em Berlim ocidental, durante a Guerra Fria. Dentro das cúpulas geodésicas, no alto de uma montanha artificialmente construída com destroços da Segunda Guerra, o homem se recusa a responder às perguntas feitas pela mulher e, a todo o momento em que ela busca entabular uma conversa, dá início a uma sequência de sons tocados em uma bateria, inviabilizando a comunicação verbal. A zona limite em que ambos se encontram (ocidente/oriente; presente/passado/futuro; presença/ausência; som/palavras) funciona como interstício entre dois planos que se tocam para logo a seguir voltarem a se distanciar, um fora do alcance do outro. Quando as batucadas cessam, ela diz: It’s over! E tudo é silêncio.

Os sons, e a música, tem o condão de nos alçar a um outro plano sensorial, para muito além do sentido expresso e encarcerado na linguagem verbal. E na obra de Anri Sala, sons parecem ter o sabor de uma espécie de madeleine proustiana, remetendo às memórias de um tempo que foi sem nunca ter sido, a uma ficção que individual ou coletivamente construímos para mediar nossa relação com o mundo, com a história e com nós mesmos.

Serviço – Anri Sala: o momento presente
Até 20 de novembro
Instituto Moreira Salles
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea, Rio de Janeiro, RJ


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.