Estrangeiro radicado no Brasil, Gustavo von Ha foi um artista que se destacou por sua originalidade. Participou de inúmeras exposições e até mesmo de uma das primeiras edições da Bienal, na década de 1950. Sua obra ganhou projeção quando começou a produzir pinturas de grandes formatos. Premiado, ele era o exemplo do artista marginal, com uma produção muito característica que nunca se enquadrou em nenhum movimento específico.
Caro leitor, a figura descrita acima é fruto da mais pura ficção. E é justamente esse processo de invenção de um artista, e de fetichização de sua imagem, que é abordado na mostra Inventário: Arte Outra, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP. Na exposição, o verdadeiro Gustavo von Ha, artista paulista de 39 anos, cria um homônimo que simboliza os estereótipos associados ao fazer artístico. A curadora da mostra, Ana Cândida de Avelar, explica que a exposição cria “um duplo do Gustavo, que seria na verdade a colagem de muitos clichês de artistas celebrados pela história da arte”.
São apresentados mais de 70 trabalhos recentes, entre telas, vídeos, fotos e objetos. As obras são inéditas, porém “não originais”, já que justamente um dos intuitos de Von Ha é questionar o conceito de originalidade: “Toda a nossa formação se dá pelo ato de copiar, imitar”, afirma. O assunto já apareceu em outras produções do artista, como, por exemplo, a série de objetos que criou a partir de cópias de desenhos de Tarsila do Amaral e José Leonilson e também no projeto Heist Films Entertainment, uma produtora fictícia de cinema que cria trailers de filmes que não existem. Nesta exposição, o paulista faz referência ao expressionismo abstrato, corrente cujo grande representante é o norte-americano Jackson Pollock. Segundo a curadora, a escolha por essa tendência se deu devido ao seu impacto na história da arte: “A pintura gestual marca a passagem da capital das artes de Paris para Nova York, no final da Segunda Guerra Mundial. A partir desse momento, todo o sistema das artes se transforma profundamente. Formam-se museus e galerias muito poderosos e uma nova configuração que é a que temos hoje”.
A exposição promove justamente uma crítica a esse modelo gestado na década de 1950. Na primeira sala, é apresentada uma série de pinturas pequenas, de caráter intimista. “É o primeiro passo dessa ilusão, da criação de um artista que começa a sua carreira trabalhando com a pintura de cavalete”, conta Von Ha. A expografia remete à de museus modernistas cultuados, como o MoMA, nos quais predomina o conceito do cubo branco. Já o espaço seguinte representa a segunda fase da personagem, que adere à lógica do expressionismo abstrato americano, com telas de grandes dimensões, fruto da pintura gestual. Há também vitrines com objetos de produção do homônimo, dentre outros apetrechos que remetem ao clichê do “artista como um trabalhador, uma pessoa superdedicada, que estuda e produz constantemente”, conta Von Ha.
Em outra dessas vitrines destaca-se uma fotografia na qual Von Ha simula a imagem icônica na qual Pollock aparece jogando tinta em uma de suas telas. “Quando fui encenar essa foto famosa, percebi que ela foi totalmente produzida. Claro, era para uma revista, mas a gente imagina que foi um momento espontâneo dentre muitos que o fotógrafo registrou. Mas percebi que não. Foi posado mesmo, aquela luz é totalmente improvável. Então a verdade é que essa foto já era uma simulação naquela época. Demorei mais de dez horas para fazer aquele clique. Ou seja, apresentar esse discurso de suposta originalidade em 2016 é totalmente incoerente”, afirma o artista.
Essa imagem é uma das pistas que levam o público a desconfiar do que está vendo, como pontua a curadora: “A ideia é que as pessoas sejam tragadas para dentro dessa ilusão. E, a partir de alguns sinais, percebam que há algo estranho. O intuito é que o espectador volte para a primeira sala dizendo: acho que eu não posso confiar no que vi aqui”. Há, portanto, uma espécie de clima de suspense que traz a questão: “Mas quem de fato é Gustavo von Ha?”. Na terceira e última sala, são expostos documentos, fotografias, livros e cadernos que remetem a esse universo ficcional da vida do artista, fazendo com que a confusão do público aumente. Há, porém, uma obra central na qual a ironia da mostra fica evidente: um vídeo. Intitulado Atravessado pelo Tempo, o audiovisual mostra a suposta trajetória do artista – como descrita no primeiro parágrafo deste texto – a partir de comentários de especialistas como Tadeu Chiarelli e Maria Alice Milliet. A curadora aponta a relevância desse trabalho: “O vídeo é muito forte. Primeiro porque o Gustavo conseguiu convencer esses especialistas a participar. E todos discutem outros trabalhos ou roteiros pensados por ele”.
A atuação é um aspecto central da mostra, o que leva o artista a associar a exposição à performance: “O que se faz hoje, e eu me incluo nisso, é uma grande representação. As pessoas simulam muitas coisas, são personagens. E no filme eu questiono isso: por que o artista tem que ser desse jeito? Para onde estamos caminhando?”. “Hoje tudo já é conhecido, a tradição parece um terreno muito seguro. Nesse sentido, o sistema da arte é uma grande encenação. Essa exposição é um trabalho muito político, pois denuncia todo esse mecanismo”, conta.
A crítica se dá, assim, dentro do próprio museu, o que enfatiza o caráter de metalinguagem da mostra: “A exposição está inserida em um museu, mas subverte toda a instituição. Tudo, desde a ficha técnica até a localização das obras”, afirma Von Ha. Essa subversão por dentro também aponta para a autocrítica: “Quando a gente faz essa denúncia do sistema das artes, é complexo porque nós também estamos dentro dele. Ele é artista, eu sou curadora. Mas se trata de questionar por que essa estrutura ainda permanece quando a gente já desvendou todo o sistema”, afirma Avelar.
Serviço – Inventário: Arte Outra
Até 5 de fevereiro de 2017
Museu de Arte Contemporânea da USP
Av. Pedro Álvares Cabral, 1.301 – São Paulo-SP, Brasil
11 2648-0254
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