Aldous Huxley: Uma psicografia não autorizada

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Foto: FMagalhães

Mais uma novidade surgiu com a recente Chuva de Silício, que desde o início do semestre vem causando grande confusão entre governos, corporações e indivíduos, por quase todo o planeta, exceção feita à Islândia, que ficou fora dessa por sua magnética localização geográfica, imune aos efeitos nefastos do fenômeno bizarro.Os fragmentos de informações que condensam das nuvens, vem trazendo, por outro lado, interessantes depoimentos, como este que se fez infiltrar no meu iPad:

“Faço questão de aproveitar a acidental oportunidade, depois de décadas do mais profundo isolamento, compartilhando uma grande frustração: É justo toda uma vida marcada por intensidades lisérgicas e literárias terminar, abruptamente, no mesmo dia em que o presidente dos Estados Unidos da América é cinematograficamente assassinado?

Não. Não é. Pouco me importa a morte de mais um Kennedy. Interpreto como uma infeliz coincidência o fato de ter sido privado da grande repercussão que minha morte poderia causar nas pessoas que lêem os meus livros, que são afetadas, ainda hoje, pelas minhas idéias, minhas imagens.

Tive, claro, o aconchego emocional quando as lágrimas dos que mais amo – filhos, pais, mulheres, amigos – foram a mim dedicadas quando encarei a escuridão,atrás do frio corredor da morte. E como é frio, pude constatar.

Não tive direito à comoção coletiva porque naquele dia, e nos sucessivos também, todos estavam muito impactados com a viúva tentando resgatar os miolos do marido espalhados pelo carro aberto. Foi desproporcional o seu drama se comparado ao meu.

Talvez tenha sido a maior lição que poderia receber. Sempre fui muito criativo, mas muito prepotente também. Atravessar, forçosamente, da soberba até a humildade foi, certamente, um ponto a favor na depuração de meu espírito. Em outras épocas teria certamente escrito: As Portas da Decepção ou Execrável Mundo Novo.  

Mas tanto as viagens como os tempos são outros, e até o ressentimento amolece diante da estimulante revolução que é a internet. Ainda não está difundida largamente entre os mortos, mas assim que virar moda, os sistemas de comunicação aí da terra certamente ficarão sobrecarregados, se conseguirem sobreviver às gotas azuladas do silício, que continuam a cair do céu.

A conexão só ocorre entre os dois mundos, o dos vivos com o dos mortos, e o inverso, já que a comunicação interna, entre os mortos, se dá de outra forma, muito interessante. Mas esse é mais que um segredo, é um pacto, honrado às pressas, no meio do corredor, onde o frio é mais intenso. É fato que preponderam no mundo de cá as leis da terra, quando se trata de consumo de tecnologia, aliás, quando o tema é consumo, em geral.

Seria importante trocar, entre os dois mundos, um tanto da internet por uma pitadinha desse exercício de ver as coisas, os bichos, as plantas e as gentes sem os limites tão contrastados. Noto por aí um furor classificatório, catalogador do sujeito. Uma clivagem do humano, fatiado em seus comportamentos. Na psiquiatria, isso é evidente, mas na discussão afoita e superficial sobre a diversidade de gêneros também, por exemplo. Vocês correm o risco de morrer enforcados pelo cabeção. Ou guilhotinados, corpo de um lado, cabeça do outro, bem longe, na psicose ou na alienação. Compreender o ser humano, sempre (que possível)! Enturmar, automaticamente, com suas viscerais ambiguidades, conflitos e respectivos manejos, às vezes serenos e comedidos, outras, apressados e esdrúxulos, não!É vital o borramento.

A estética daqui é mais impressionista que acadêmica. A ética também.

Para mim, um viajante convicto, aqui é o paraíso natural, sem artifícios. É o pouso suave no movimento. É uma recompensa. Pelas dores e frustrações que a passagem ao isolamento silencioso e o falecimento ignorado me impuseram.

Espero, retomando minha condição expressiva, meu cordão umbilical com o mundo dos vivos, contribuir com a comunicação tão almejada, ainda que, ao menos no início, sujeita às interferências próprias de sua dimensão psicográfica.

Obrigado pelo espaço, Auro.”

De nada, Aldous.

Às ordens.


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