A fim de escrever algumas palavras para esta revista, a primeira impressão ao chegar à Casa Triângulo, em São Paulo, é que tinha diante de mim um trabalho escolar, desses que o aluno faz para passar de bimestre. A aluna/artista Marcia Xavier fotografou alguns lugares famosos da Itália e interferiu no resultado, inserindo principalmente fotos de mãos. Procurou diluir algumas imagens por meio de backlights de piso ou cilindros de vidro. Em outros trabalhos, agregou no entorno um punhado de sal ou velas derretidas. Simples assim.
Em seguida, fui informado de que o trabalho era resultado de um período de residência artística em Roma, de setembro a novembro de 2013. Residência artística em Roma! Mais de dois mil anos de acúmulo artístico. Templos, palácios, igrejas, praças, fontes, estátuas, pintura… Como assim? Marcia Xavier tinha diante de si universalistas da Renascença: Brunelleschi, Alberti, Vasari, Ficino, Picco della Mirandola, Leonardo, Michelangelo, Rafael. O que fazer? Isso sem falar nos vestígios do esplendor do Império Romano, que havia absorvido a tradição helênica por meio dos etruscos, da Magna Grécia e da própria Grécia.
Então, lembrei-me de que Marcia Xavier gosta de construir objetos óticos em suas instalações, como as da série Olhos d’Água.
Por isso, olhei mais de perto para suas engenhocas feitas de fotos, vidros e luz. Elas nos convidam a girar entorno, de tal forma que passamos a fazer parte da obra. A foto ali presa revela, esconde e modifica uma imagem prenhe de significado. É o caso, por exemplo, do trabalho que dá nome à exposição, Querida. Nela, uma caixa de mármore guarda uma foto anônima do século XIX impressa em “duratrans” (material transparente) – uma mulher revelando com as suas mãos a parte interna de sua vagina. Ela é iluminada por baixo por velas brancas meio derretidas. No interior da caixa, cilindros de acrílico confundem a visão e faz com que o expectador se desloque à procura do significado.
Na Itália, Marcia Xavier se apaixonou pelo trabalho do fotógrafo Luigi Ghirri, cuja influência está presente, de algum modo, na exposição. A artista conta sobre uma de suas fotos de um pedaço do céu: “Depois de conviver com as imagens de Ghirri, primeiro na exposição e depois nos livros, passei a enxergar sua fotografia em tudo que via pela cidade. Como se dilatasse o tempo, sua obra passa uma sensação de calma, unindo concentração e contemplação. Haikai é uma fotografia ghirriana pela leveza. A paisagem sem chão – a lua, a nuvem e a ponta de um pinheiro flutuam soltas no céu…”.
Em sua residência latina, a artista levava uma grande mão para passear por Roma, fotografando-a em diferentes ambientes. É, claro, uma referência à A Criação de Adão, de Michelangelo. O novo e o velho, o tempo e o espaço engarrafados em cilindros cambiantes remexidos pela mão humana. O que a pequena e delicada exposição Querida parece estar querendo nos dizer é que a resposta aos desafios artísticos está no fazer humano, no ato de debruçar-se sobre a tradição e continuar fazendo.
Marcia Xavier começou nos anos 1990 fotografando partes de seu corpo com uma Polaroid. Mantém-se coerente, evidentemente. O surgimento da fotografia há dois séculos disparou um processo de crise sem fim da representação, que se aprofundou muito com a revolução digital contemporânea. A presença de partes do corpo no trabalho da artista talvez venha da necessidade de dar alguma referência à realidade. Mas qual?
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