A rica arquitetura pobre da arquiteta Lina Bo Bardi

A arquiteta italiana Achilina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi, faria nesta sexta-feira (5), 100 anos. Naturalizada brasileira em 1951, Lina projetou e construiu diversas obras em São Paulo, sendo a mais conhecida delas o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e, uma das mais aplaudidas, o Sesc Pompeia. A arquiteta também teve forte atuação na Bahia, onde dirigiu o Museu de Arte Moderna e fez o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Para se aprofundar no legado de Lina, Brasileiros relembra reportagem de Kiki Mazzucchelli sobre a obra da arquiteta. Veja abaixo:

Lina Bo Bardi no canteiro de obras que começava a dar corpo ao MASP
Lina Bo Bardi no canteiro de obras que começava a dar corpo ao MASP – Foto: Lew Parrella

Hoje é consenso entre profissionais da arte de todo o mundo que a expografia criada por Lina Bo Bardi, para a sede do Museu de Arte de São Paulo na Avenida Paulista (1968), é um dos projetos museográficos mais inovadores da história. Quem viveu ou frequentou a cidade até meados da década de 1990, provavelmente se lembra da pinacoteca do MASP em sua forma original, com as pinturas instaladas em cavaletes de vidro espalhados pelo vasto piso aberto do museu, como se estivessem flutuando dentro de uma imensa caixa de vidro. O sistema criado por Lina permitia ao público encontrar as obras de maneira mais livre, sem um percurso predeterminado por uma organização cronológica ou estilística, provocando, em suas palavras, um “choque que desperta reações de curiosidade e investigação”.

Lina faleceu em 1992 e, em 1996, com o afastamento de seu marido Pietro Maria Bardi do MASP –­ que comandara o museu desde sua fundação em 1947 –, os cavaletes foram removidos e substituídos por painéis convencionais pela gestão de Júlio Neves. Desde então, o museu vem passando por um processo de progressiva decadência, tendo sofrido pequenas reformas que descaracterizaram alguns de seus elementos originais, apresentando mostras de qualidade duvidosa e passando por uma série de crises financeiras.

O MASP foi inaugurado, em 1962, pela rainha Elizabeth II, da Inglaterra
O MASP foi inaugurado, em 1961, pela rainha Elizabeth II, da Inglaterra – Foto: MASP

Na Zona Oeste da cidade, outro projeto de Lina teve um destino mais fortuito e, sem dúvida, é hoje um dos centros culturais e de lazer mais importantes de São Paulo. Realizado 20 anos após a construção do MASP, o SESC Pompeia (1977-1986) foi criado em uma área originalmente industrial, onde viviam trabalhadores e uma classe média baixa. O edifício de uma antiga fábrica de tambores metálicos foi preservado e reformado durante o período de abertura política do País e, em muitos aspectos, reflete as aspirações democratizantes da época. Lina optou por manter a estrutura dos galpões industriais, com seus vastos espaços abertos que possibilitavam a convivência do público e a realização de diferentes tipos de atividades. Por outro lado, dedicou-se obsessivamente à criação de elementos lúdicos, como a grande lareira e o Rio São Francisco, situados no pavilhão multiuso, bem como o design de todo o mobiliário. Segundo a arquiteta: “A ideia inicial de recuperação do dito conjunto foi a de ‘arquitetura pobre’, isto é, não no sentido de indigência, mas no sentido artesanal, que exprime comunicação e dignidade máximas, por meio dos menores e humildes meios”.

De fato, o conceito de “arquitetura pobre” é justamente um dos elementos fundamentais para se entender a originalidade do trabalho de Lina. Quando desembarcou no Rio de Janeiro, no final de 1946, já estava plenamente envolvida com a arquitetura moderna europeia, tendo trabalhado como editora de revistas importantes como a Domus. No Brasil, deu continuidade ao trabalho editorial e iniciou sua carreira com a adequação dos espaços do edifício da Rua 7 de Abril, primeira sede do MASP, e mais tarde com seu primeiro projeto construído, sua residência no Morumbi, em 1951. A famosa Casa de Vidro, embora extremamente arrojado para sua época, é ainda um projeto bastante característico do modernismo europeu, com grande influência de Mies van der Rohe. A virada original na arquitetura de Lina aconteceria apenas alguns anos mais tarde, após uma estadia na Bahia, entre 1958 e 1964, quando dirigiu o Museu de Arte da Bahia e realizou a reforma do Solar do Unhão, um importante conjunto arquitetônico do século XVI que abrigaria sua sede a partir de 1963.

Foi no Nordeste brasileiro, longe da “industrialização abrupta não planificada” das regiões “desculturadas” do Sudeste do País que Lina buscou reexaminar a produção material local, para formular alternativas ao que identificava como a crescente dependência cultural do sudeste em relação às nações hegemônicas. De fato, acreditava que os paulistas estavam muito comprometidos com a ideia de modernização industrial e com a cultura de massa importada, enquanto no Nordeste ainda havia uma força reativa que vinha de uma tradição arcaica popular. Esse pensamento é claramente articulado em seu texto Por que Nordeste?: “Procurar com atenção as bases culturais de um país (seja quais forem: pobres, míseras, populares) quando reais, não significa conservar as formas e os materiais, significa avaliar as possibilidades criativas originais. Os materiais modernos e os modernos sistemas de produção tomarão depois o lugar dos meios primitivos, conservando, não as formas, mas a estrutura profunda daquelas possibilidades”.

Construído 20 anos após o MASP, o SESC Pompéia (1977-1986) era uma antiga fábrica de tambores de metal que foi preservada e reformada
Construído 20 anos após o MASP, o SESC Pompéia (1977-1986) era uma antiga fábrica de tambores de metal que foi preservada e reformada – Foto: Lew Parrella

Assim, a partir de sua experiência no Nordeste, Lina foi gradualmente incorporando elementos do vernáculo brasileiro em sua arquitetura. Isso se refletiu muitas vezes na escolha de determinados materiais ou técnicas, mas, sobretudo, determinou a criação de projetos concebidos para atender às necessidades específicas das comunidades em seu entorno.

Embora tenha poucas obras construídas, Lina muitas vezes manteve um envolvimento duradouro com seus projetos, como é o caso do MASP e do SESC Pompeia. Com um caráter mais humanista, nem sempre “bela” no sentido tradicional, porém altamente inclusiva e democrática, Lina começou a alcançar projeção internacional apenas na última década. Projetos de destaque como a exposição The Insides are on the Outside, realizada na Casa de Vidro no ano passado pelo celebrado curador suíço Hans Ulrich Obrist e uma mostra de objetos da coleção de arte popular da arquiteta, planejada pelo alemão Roger Buergel, que foi diretor artístico da Documenta 12 (2007), no Museum Johann Jacobs, em Zurique, são apenas alguns exemplos desse fenômeno. Enquanto isso, no coração de São Paulo, o MASP, um de seus mais importantes projetos, continua a definhar.

A ARQUITETURA DA LIBERDADE!

Foi assim que se expressou John Cage ao se deparar com o edifício projetado por Lina Bo Bardi. Pena, mas isso não existe mais. “Devolvam a museografia de Lina”, diz o arquiteto Marcelo Ferraz 

Por Marcelo Pinheiro

Em 7 de novembro de 1968, com a abertura do Museu de Arte de São Paulo, a capital paulistana ganhou um de seus principais cartões-postais. Mas o MASP vem sendo submetido a grotescas alterações de seu projeto original, especialmente após a morte da arquiteta, em 1992. A mais evidente delas: a extinção da museografia criada por Lina, baseada na utilização de dezenas de cavaletes flutuantes de vidro em um espaço comum.

O arrojo do projeto original de Lina Bo Bardi prevê cavaletes de vidro e base de concreto para expor as obras. Hoje, com obras na parede, o MASP tornou-se um museu convencional
O arrojo do projeto de Lina prevê cavaletes de vidro e base de concreto para expor as obras. Hoje, com obras na parede, o MASP tornou-se um museu convencional
(Foto – Luiz Hossaka)

Em 1977, o arquiteto Marcelo Ferraz era estudante da FAU-USP e deu início a seu estágio de graduação
como assistente de Lina. Experiência que durou 15 anos, descrita por ele como “mais importante do que a própria faculdade”. Em seu mais recente livro, Arquitetura Conversável (2011), Ferraz atribui ao MASP o valor de paradigma: “A arquitetura que fica para contar ou testemunhar a história da humanidade é aquela que mantém algo de sagrado, no sentido de respeitável, de depositário de crenças, devoção, ou representante do imaginário de um povo – símbolo de uma gente, de uma época. E o MASP é isso”. Em setembro, Ferraz e André Vainer, arquiteto que também foi parceiro profissional de Lina, vão realizar, no SESC Pompeia (outro grande legado da arquiteta a capital paulistana), a exposição A Arquitetura Revolucionária de Lina Bo Bardi. A ARTE!Brasileiros entrevistou Ferraz para falar sobre Lina e o MASP. A seguir, os melhores momentos da conversa:

Lina hippie “Com relação ao centenário da Lina, eu e o André temos algumas preocupações, porque ela hoje se tornou uma coisa pop, mística, e é bom colocar parâmetros e até alguns limites. Hoje, muita gente pinta a Lina como uma figura muito doida, hippie, mas ela era uma arquiteta que trabalhava com rigor e tinha métodos muito racionalistas de trabalho. Lina defendia a poética e a liberdade de trabalho. Via na arquitetura uma ferramenta política de atuação no mundo e de transformação desse mundo. Essa é a Lina que nós pretendemos mostrar na exposição.”

Museografia libertária “Neste ano em que comemoramos o centenário de nascimento da Lina, gostaríamos que o museu devolvesse sua museografia libertária – aliás, tão libertária quanto o vão livre. Acho que todos os argumentos técnicos que possam dar, como a incidência da luz do dia, são de fácil solução. Os cavaletes de vidro eram feitos para cada uma das obras, mas hoje podemos redesenhá-los, com vários furos, possibilitando, assim, o uso para múltiplas obras.”

Provincianismo “As pessoas que combatem a museografia original do MASP têm uma visão submissa e provinciana de achar que todos os museus do mundo devem se parecer com os europeus ou os americanos. A museografia proposta por Lina permitia reunir uma grande ‘família’ de pintores. Os artistas não precisavam ser divididos em escolas. Poderiam se relacionar, mesmo que uma obra fosse do século XVI e a outra do século XX. Uma proposta radical, uma experiência que foi levada às últimas consequências. Mas o museu vem sendo guiado com esse complexo de inferioridade, e isso vem de sucessivas gestões. O desafio que nós fazemos para a atual direção do museu: devolvam a museografia da Lina. Ao menos durante um ano, para comemorarmos dignamente o centenário.”


Comentários

Uma resposta para “A rica arquitetura pobre da arquiteta Lina Bo Bardi”

  1. Avatar de Heron Cortizo
    Heron Cortizo

    Seria maravilhoso se os arquitetos atuais pudessem alinhar a beleza com a funcionalidade necessária para adaptarmos a um planeta mais sustentável, no que se fala no reaproveitamento da luz solar dentro dos ambientes e da água da chuva para ser reutilizada.
    Mas uma coisa é fundamental para eles terem sucesso: ser belo.

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