Tunga, filho pródigo da França

Nos anos 1980, eu estava em Paris e um estalo na minha cabeça me fez tentar ver a cena artística da cidade com o olhar de Tunga. Ele morava lá há algum tempo, tinha um vernissage na Galerie Daniel Templon, e eu era entusiasta de seu trabalho. Melhor impossível.

Tudo me levava a crer que eu estava buscando mais uma reportagem dentro dos limites do que o escritor Tom Wolfe chama de statusfera, aquelas matérias especiais, em que a gente aposta todas as fichas. Caminhamos pelo Quartier Latin, sentamos num café, ouvimos gritos seguidos de um barulho de objetos atirados pela janela, rimos sem dar importância. Fiz algumas fotos dele, falamos de arte e da arte, era como se eu tivesse colocado todo meu sistema nervoso central a serviço desse encontro.

O momento era de suave melancolia intelectual e cultural, alternado por cenas cortantes, típicas de uma cidade muito aberta aos imigrantes. Ainda assim, Paris era de fato uma festa, de dia envolta em um clima supostamente comportado, para à noite transformar-se em diva profana.

Voltei ao Brasil e publiquei uma matéria burocrática, sem brilho, omitindo o que me havia impressionado no
Tunga “parisiense”. De certa forma, meio desconcertada por não ter descoberto a chave de um mistério que eu imaginava existir na vida de Tunga. Descobri que eu não tinha em mente como abordar tudo isso jornalisticamente. Talvez, por isso, tenha esquecido meu caderno de notas na mesa do café.

Agora, anos depois de tantos outros encontros e reportagens sobre seu trabalho, passo a mão no telefone e, como se entrasse no túnel do tempo, me coloco virtualmente com Tunga no café do Quarter Latin, onde nos despedimos em 1981, e retomamos o papo. “Paris e a França foram uma grande vitrina para meu trabalho. Uma resposta natural de toda a cultura que assimilei e acumulei durante os anos que estudei arte, filosofia, psicanálise… A França foi uma plataforma possível”, ele comenta.

Tunga é muito mais que uma ponte poética entre a França e o Brasil. Marca território nos dois países. Não é por acaso que ele retira minerais translúcidos do solo brasileiro para plantá-los na França. O trabalho com essas esculturas transcende a geologia, é exercido em enormes campos magnéticos associados a cristais energéticos. “Essa obra compõe-se de três portais de cinco metros cada um, executados com pedras brasileiras. Ainda estamos trabalhando duro para finalizá-la, logo que estiver pronta será divulgada”, diz ele. Há quatro anos Tunga trabalha intensa e silenciosamente sem expor nada, mas daqui até o final do ano apresenta o resultado dessa empreitada em vários lugares.

Depois de Rússia e Índia, em novembro serão expostas outras peças executadas com cristais, mas de menores dimensões, em Paris, na mesma Galerie Daniel Templon da rua Beaubourg, com a qual trabalha desde os anos 1980.

Em uma performance instigante da década de 1980, Tunga dialoga com sua cabeça decepada e atirada ao mar. ao lado, depois de quatro anos sem expor, ele volta com um conjunto de esculturas feitas em cristal e ferro e que viajará pelo mundo, da rússia à frança. a foto da capa de arte!brasileiros é um detalhe dessa obra

 

O trabalho de Tunga, que desde o início envolve várias mídias (como vídeo, desenho, escultura, instalação, performance, cinema), tomou impulso em Paris. São ainda de 1980 as obras impregnadas de correntes, cabelos, feltro e que chamavam a atenção da crítica. As esculturas de Tunga são núcleos que se juntam, sugerindo uma troca de energia entre as partes do objeto. O gosto pela arqueologia e pelas formas herméticas acentua a presença de conceitos ligados às sensações matéricas. A recorrência do conceito faz com que um trabalho leve a outro. Foi assim que surgiu, nessa mesma época, um dos ícones de sua obra: Xifópagas capilares entre nós (1985), em que a sedução pela anormalidade ganha corpo e ele celebra, radicalmente, a proximidade do homem com ele mesmo. Dois anos depois, Semeando sereias, com foco em um Tunga dramático, quase alegórico que “dialoga” com sua própria cabeça decepada, com cabelos exageradamente crescidos e arremessada ao mar por ele mesmo.

A França reconhece seu “filho” pródigo que, no ano do Brasil na França, em 2005, chegou ao Grand Palais e ao Louvre, com duas exposições memoráveis. A convite da crítica francesa Catherine David, curadora da X Documenta de Kassel, na Alemanha, Tunga participou dessa festejada edição, ocupando uma das plataformas de trem da cidade. Era Tunga, em seus melhores dias!



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