Um artista despatriado e sem preconceitos

Fahlstro
O artista Öyvind Fahlström. Foto: Divulgação

Nascido em São Paulo em 1928, filho de pais escandinavos, Öyvind Axel Christian Fahlström viveu sua primeira infância nas terras quentes do Rio de Janeiro e de Niterói. Estudou em colégio britânico, onde foi alfabetizado em português e inglês, gostava de frequentar praias e jogar futebol. Em julho de 1939, com apenas dez anos, foi enviado pelos pais para passar as férias na Suécia, onde moravam avó, tia e outros parentes. Deveria retornar logo, seguir a vida no Rio e crescer como um adolescente brasileiro, não fosse a eclosão – cerca de um mês após sua chegada a Estocolmo – da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que devastou o continente europeu nos anos seguintes. Assim como Fahlström ficou impedido de voltar ao Brasil, seus pais não puderam viajar para a Suécia. Apenas em 1948, quando já tinha 20 anos, o jovem voltou a ver os pais, que retornaram às terras frias da Escandinávia. Obrigado a escolher entre prestar o serviço militar no Brasil ou na Suécia, escolheu a segunda opção, já que havia, inclusive, esquecido a língua portuguesa. Fahsltröm mudou-se ainda para Nova York e viveu o resto da vida entre a cidade americana, Estocolmo e outras capitais europeias. Morreu aos 47 anos, em 1976, em decorrência de um câncer, e desde a partida para as férias na Europa nunca mais pisou em solo brasileiro.

O breve resumo da vida de Öyvind Fahlström descrito acima não abre este texto apenas por ser fascinante, até mesmo perturbador, mas principalmente por dizer muito sobre a produção do artista, que ganha destaque este ano na 32ª Bienal Internacional de São Paulo. Em uma entrevista ao MoMA (Museum of Modern Art) de Nova York, em 1968, perguntado sobre o que em sua formação considerava relevante ao entendimento de sua arte, Fahlström respondeu: “Os primeiros dez anos passados no Brasil”. De fato, temáticas relacionadas ao País, assim como referências à política e cultura latino-americanas, aparecem de modo recorrente na produção de Fahlström. Mas, mais do que isso, a trajetória de vida do artista é reveladora de sua produção e seus interesses de um modo geral. “Mais do que sueco, ele foi uma figura transnacional”, afirma o dinamarquês Lars Bang Larsen, cocurador da Bienal. E ele logo se corrige: “Ou talvez chamá-lo assim seja muito positivo. Pode-se dizer mesmo que ele foi quase um despatriado, sem lar”.

Seja como for, desenraizado de Estados nacionais e criado boa parte da juventude distante dos pais, Fahlström também não se afiliou a correntes artísticas, não se apegou a suportes para criar seus trabalhos nem seguiu ideologias de modo ortodoxo. Pelo contrário, foi um artista híbrido, experimental e polimorfo, em vários sentidos. “Seu trabalho não se encaixa em nenhuma das categorias com as quais os historiadores da arte gostam de trabalhar. Era um tanto quanto pop, mas muito político para ser realmente pop. Era um tanto surrealista, mas um surrealista tardio, que também trabalhava com poesia concreta. Ele estava sempre em algum outro lugar em vez de onde deveria”, explica Larsen. Além disso, diz o curador, Fahlström trabalhou com muitas mídias diferentes, de modo incessante, o que tornou difícil que fosse reconhecido como um especialista em uma ou outra área. “Não era o grande pintor ou o grande autor de instalações, por exemplo. Ele trabalhou com tudo: jornalismo, tradução, poesia, filmes, rádio, performances, peças de teatro, instalações e arte gráfica. Muitas vezes, inclusive, misturando as coisas, em um tempo em que isso não era academicamente aceito, digamos assim. Não era norma.”

"The Cold War" (1963-65). Foto: Divulgação
“The Cold War” (1963-65). Foto: Divulgação
Línguas, sons e textos

Da trajetória errante de Fahlström pode-se depreender, ainda, seu interesse por geopolítica, história, linguística e semiótica, temas recorrentes em sua obra desde os primeiros anos de produção. Logo após terminar os estudos em história da arte e estudos clássicos, em 1952, o artista (autodidata em sua produção prática) redigiu o que é creditado por alguns estudiosos como o primeiro manifesto de poesia concreta do mundo, de 1953. Coincidentemente, trabalhou em paralelo aos concretistas brasileiros Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, apesar de sua poesia concreta estar mais relacionada à sonoridade do que à visualidade das palavras. “Fahlström fez também um esforço de construir uma outra língua, toda baseada em sons de pássaros. Uma coisa maluca, mas fantástica”, conta Larsen, sobre um trabalho de áudio que estará exposto na Bienal. “Ele queria reinventar linguagens, decodificá-las.”

O trabalho com palavras e signos na obra de Fahlström aparece também nos desenhos, pinturas e instalações, não apenas em textos e poesias. No quadro Ade-Lendic-Nander II, por exemplo – exposto na 5ª Bienal de São Paulo, em 1959, sem a presença do artista –, dezenas de pequenos sinais ocupam a tela, pintada a óleo. Nos trabalhos mais diretamente ligados a questões políticas e históricas, como os “mapas” desenhados a partir dos anos 1960, poemas, discursos políticos, datas e valores financeiros são inscritos em meio às ilustrações, muitas delas com traços característicos do cartum. “Ele queria criar um tipo diferente de pintura histórica, que não era heroica ou idealizada, mas que lidava com os problemas do dia a dia, com padrões de poder e exploração em um nível global”, explica Larsen. As preocupações com política e justiça social, especialmente com os países do Terceiro Mundo, fizeram com que Fahlström recusasse um convite para expor no Brasil nos anos 1960, durante o regime militar. “Ele dizia que o País vivia uma ditadura militar particularmente sórdida”, explica Larsen. Fizeram também com que o autor produzisse uma série de trabalhos sobre o Chile, refletindo sua esperança na consolidação de um socialismo distinto do soviético, com o governo de Salvador Allende, e depois a desilusão com o golpe e o regime ditatorial de Augusto Pinochet.

 "Africa Banner" (1966). Foto: Divulgação
“Africa Banner” (1966). Foto: Divulgação

O engajamento político de Fahlström, diferente daquele ortodoxo que predominava nos partidos de esquerda no período de Guerra Fria, surgia misturado à fascinação com a contracultura, o mundo underground e o movimento hippie. “Ele insistia em ser um artista, não um ativista. Pensava em como a arte poderia se politizar, mas sem se tornar panfletária, ou instrumentalizada pela política oficial”, explica Larsen. Nesse sentido, uma de suas grandes preocupações era democratizar a arte, torná-la parte da vida pública e mais acessível a um público amplo. Para isso, o artista produziu, por exemplo, trabalhos que pudessem ser feitos em série, múltiplos. “Para que pudessem ser vendidos mais barato, como um modo de minar o sistema tradicional de arte”, diz Larsen. Mais que isso, produziu obras complexas, com mensagens das mais variadas, sem tornar sua arte inacessível.  “Os trabalhos são bastante codificados, mas ele sempre te dá o meio para quebrar o código. Você não precisa ser um especialista em arte para isso, sempre há um meio”, conclui o curador.

Ao expor o trabalho de Fahlström na 32ª Bienal de São Paulo, que acontece entre 10 de setembro e 11 de dezembro, os curadores procuram trazer ao Brasil uma obra que, apesar do estreito diálogo com o País, ainda é pouco conhecida por aqui. Escolhem apresentar, também, um trabalho sintonizado com a proposta curatorial da edição, intitulada Incerteza Viva, que se propõe a aceitar a imprevisibilidade da vida e a contribuir para discussões globais sobre ecologia, economia, política, condições sociais e climáticas. “Há essa dimensão de sua trajetória de vida, tão precária, sempre tão incerta, e há o fato de que ele tinha uma mensagem para o mundo, o que também tem a ver com as ideias que estamos trabalhando na Bienal”, diz Larsen. Sobre uma obra criada em 1973, a instalação Garden – A World Model, Fahlström disse certa vez que a via como “uma imagem onírica da memória de infância de um jardim brasileiro”. “Imagino que para ele seria bastante doloroso voltar ao Brasil tendo perdido o domínio da língua”, diz Larsen. “Ele continuou sonhando com o Brasil, mas não quis voltar.” Se não voltou em vida, ganha agora grande destaque na Bienal, 40 anos após sua morte. Com a instalação sonora Birds in Sweden (pássaros na Suécia), que será montada fora do pavilhão, no próprio Parque Ibirapuera, Fahlström terá, agora, uma obra exposta em um jardim brasileiro, talvez semelhante àquele de sua memória de infância.



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