Um infiltrado dentro do sistema

Para Um Jovem de Futuro Brilhante (1974), Carlos Zilio. Foto: Divulgação
“Para Um Jovem de Futuro Brilhante” (1974), Carlos Zilio. Foto: Divulgação

Testemunhas silenciosas de seu tempo, os objetos também contam histórias. O sabão, por exemplo, foi constantemente associado à ideia de branqueamento, sendo anunciado em propagandas de evidente cunho racista. Os óculos, por sua vez, eram vistos até o final do século XIX como instrumentos de trabalho e, portanto, voltados ao público masculino. A tradicional maleta do executivo também não foge ao caso. Símbolo de status social, a chamada pasta 007 tornou-se uma presença obrigatória no vestuário de muitos brasileiros, animados com as promessas do boom econômico da década de 1970. A popularização deste objeto e do ideal de um futuro rico e promissor não passou batida pelo artista Carlos Zilio, que ironizou o fenômeno em uma de suas principais obras: Para Um Jovem de Futuro Brilhante (1974). No trabalho, Zilio apresenta um exemplar comum destas maletas. Mas, em seu interior, ao invés de haver documentos e outros objetos de praxe, há um conjunto de pregos enfileirados com as pontas para cima. Organizados com o rigor de um batalhão, os pregos advertem para os perigos da alienação de uma juventude sedenta por ingressar no mercado de trabalho.

A obra descrita acima integra a exposição Carlos Zilio 1973/1977, em cartaz na galeria Raquel Arnaud, em São Paulo. A mostra apresenta cerca de vinte trabalhos, entre fotografias, desenhos e objetos realizados pelo artista carioca, que emergiu no cenário artístico brasileiro nos anos 1960, em período marcado pela ditadura militar. Estudante de psicologia na UFRJ, o artista ingressou na militância política nesta época, produzindo obras que criticavam o regime. Em 1968, deixou de atuar como artista e aderiu à luta armada, sendo posteriormente ferido à bala em confronto com a polícia e preso durante dois anos, até 1972. A produção que se encontra na exposição foi feita pelo artista logo após sua saída do cárcere. Os trabalhos diferem bastante dos anteriores, como pontua a curadora da mostra Luisa Duarte: “As obras de antes da sua prisão estavam associadas à nova figuração, com a presença de muitas cores. A partir de 1973, os trabalhos tornam-se secos, dialogando com a arte conceitual da época”. Nesta nova produção, a crítica ao regime militar continua, porém de uma perspectiva mais sombria e intimista.

Essa rigidez formal adotada pelo artista aparece nos próprios materiais que compõem as obras, como pregos, agulhas e lixas. Em entrevista à ARTE!Brasileiros, Zilio fala sobre sua opção por esses objetos: “Lixa, agulha, prego, são elementos que podem ter uma conotação hostil, de algo que fere. Esses materiais implicam certa aridez e contundência da própria vivência de modo geral, são uma afirmação dentro de um contexto extremamente adverso”. A curadora também pontua que os materiais dialogam com a política do período: “É preciso entender que era uma época marcada pela censura, o que levava os artistas a falarem por códigos. Nas paisagens criadas por Zilio não há elementos dóceis. São agulhas, pregos, objetos que podem machucar e evocam situações muito extremas da vida não só pessoal, mas pública do Brasil naquela época”.

Nesses trabalhos, Zilio faz menção à ideia de paisagem, mas, ao contrário da paisagem tradicional, suas obras remetem a um foro íntimo: “Trata-se de uma visão subjetiva, o meu olhar sobre aquele momento. Porque se você fosse ver a imagem que predominava neste período, em pleno milagre econômico, era uma paisagem aparentemente eufórica. Porém, eu proponho uma visão mais crítica e inóspita mesmo. Novamente, o prego, e lixa e agulha que são elementos que remetem a uma vivência de conflitos, dor e dificuldade. Quer dizer, por trás da aparente tranquilidade, na verdade, o que eu via era uma paisagem desolada”.

Na obra Para Um Jovem de Futuro Brilhante, citada acima, Zilio também faz referência ao período de 1969 a 1973, época do chamado milagre econômico, em que o PIB crescia a uma taxa de quase 12% ao ano. Ao lembrar daquele momento, o artista conta que “havia uma euforia no ar. A sociedade de consumo se fortalecia, criando novos estereótipos. Hoje isso talvez já seja usual, mas na época era um padrão novo de comportamento. Foi nesse contexto que apareceu a figura do jovem executivo, que faz fortuna de uma hora para outra. Na obra eu faço uma crítica a esse fenômeno, apropriando-me desse comportamento para revertê-lo criticamente. Queria chamar atenção para o tipo de construção fictícia que estava se formulando do ponto de vista de um projeto econômico e social”.

A curadora também evidencia o viés crítico do trabalho: “Nesta obra, o artista questiona a razão executiva representada por diversos emblemas como o relógio de ponto, a maleta, o paletó pendurado na cadeira. Mesmo o título do trabalho já é muito irônico. E o interessante é que onde deveria estar o dinheiro e a papelada da transação estão os pregos, como se eles estivessem infiltrados no meio da cena, que diz respeito aos negócios, à economia liberal. O Zilio atua como um infiltrado mesmo, propondo uma outra chave, que destrói o clichê do acessório profissional do típico burguês e infiltra um lastro de rebeldia, radicalidade e perturbação daquela ordem”.

Passados mais de quarenta anos, a obra de Zilio não deixa de dialogar com o presente, como pontua o próprio artista: “Nos últimos tempos, há um interesse dos curadores em expor trabalhos que tenham um viés politizado. Isso se dá obviamente porque o momento que o Brasil vive é de grande fragilidade institucional. Tanto a ditadura quanto hoje são tempos nos quais a política demanda muito das pessoas, posicionamentos, questionamentos. Mas obviamente são situações muito diversas. Em 1973, vivíamos um regime militar, agora é algo mais confuso”. 

Duarte enfatiza que mesmo politizados, os trabalhos de Zilio não são panfletários, “algo que as novas gerações de artistas devem buscar”. Como exemplo dessa postura, ela cita a obra Auto-Retrato, desenho feito em papel timbrado no qual há um borrão de tinta vermelho, que remete a um ferimento, junto ao nome do artista: “Esta obra talvez seja uma das poucas pistas para que o visitante que não conhece a produção do Zílio entenda que existe ali um lastro de violência, de sangue, de uma época de convulsão do Brasil, na qual os sinais estavam todos invertidos. E, obviamente, é interessante ver essa exposição à luz de um momento muito conflituoso que é o do Brasil hoje”.

Serviço – Carlos Zilio 1973/1977
Até 14 de janeiro de 2017
Galeria Raquel Arnaud

Rua Fidalga, 125, Vila Madalena, São Paulo, SP
(11) 3083 6322


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