Um androide recitando fragmentos retóricos sobre o fim do mundo. Pequenos robôs do tamanho de caranguejos esboçando cegamente imagens aparentemente aleatórias em meio às exposições de um museu vazio. As cabeças dos maiores pensadores do Ocidente, fundidas em bronze e perfuradas com postes de metal. Intitulada Para o Filho do Homem que Comeu o Rolo – uma referência ao livro de Ezequiel 3:3 da Bíblia –, a recente exibição da artista Goshka Macuga, que ficou em cartaz na Fondazione Prada em Milão até 19 de junho último, parece encenar um museu tomado por máquinas após o desaparecimento da humanidade. Caminhando pelo espaço, os visitantes se perguntam se isso é um ataque às estruturas organizacionais e as estratégias de exibição da cultura ocidental ou algum tipo de piada amarga. É provavelmente as duas coisas.
No primeiro espaço da exposição – um pódio de vidro fechado no andar térreo da nova sede da Fundação em Milão, projetada pelo renomado escritório de arquitetura OMA – , um androide masculino sentava-se calmamente em uma plataforma, enquanto o enorme espaço em seu entorno encontrava-se repleto de obras de arte de formato esférico e de grande escala. O rosto, os ombros e as mãos do robô eram uma versão hiper-realista de um homem de cerca de 30 anos; a barba espessa e bem mantida; os lábios e gestos, conforme ele repete seu discurso, se mostram suaves e estranhamente reais, até mesmo quando vistos de perto. Um colete transparente revela suas juntas mecânicas, no entanto, e sua caixa controladora é exibida em plena vista. Não se trata de um truque ou uma ilusão. Ele não tenta imitar algum original da melhor forma possível. Muito pelo contrário: parece sugerir que tal escrúpulo, embora tecnicamente possível, já não é necessário.
O robô discursa, apresentando uma forma de “iniciação aos tempos” que é tudo menos ordinária. Sua fala é composta principalmente por excertos de discursos, livros e monólogos sobre a memória, a história e o fim do mundo. Cada trecho (as fontes variam de Winston Churchill a Mary Shelley, de Donna Haraway ao AI HAL9000 de Kubrick) é uma peça de texto elegantemente trabalhada, polida e com toda a pompa de uma retórica bem acabada. Ainda assim o resultado geral é sinuoso e vago, à medida que a voz desliza sem problemas de um trecho para o próximo: é a linguagem em sua forma mais refinada e evocativa, e ainda assim beirando a fronteira do inexpressivo e sem sentido.
Ao redor do robô, a seleção de grandes esculturas, como uma sala meio vazia de museu. Um poliedro distorcido feito de metal enegrecido brilha em um canto (Alberto Giacometti, Cube,1934); uma esfera de ouro gigantesca captura a luz de paredes de vidro da sala semelhante a um aquário (James Lee Byars, The Golden Sphere, 1992); um cilindro branco maciço paira ao redor, imperceptivelmente, se movendo através no espaço (Robert Breer, Float, 1970/2000).
A prática de Goshka Macuga muitas vezes incorpora seleções de obras de outros artistas, em um gesto que ela sempre insistiu em definir como artístico em vez de curatorial. As obras aparentemente parecem não ter elemento, histórico ou teórico, em comum, exceto pela forma arredondada e uma aparência um tanto sombria, vagamente sinistra. Juntas, elas perdem sua semântica específica – sejam os laços materiais com o modernismo ou Arte Povera, ou ainda a influência do conceitualismo –, a fim de evocar uma paisagem lunar estéril e vazia. Assim como no discurso do androide que estranhamente ressoa entre elas, a perda de significado dessas esculturas parece antecipar o que vai acontecer à cultura humana após seus criadores terem desaparecido. Os dispositivos desenvolvidos para armazená-las e organizá-las – as estratégias de exposição de museu e computadores – vão se mostrar incapazes, ou relutantes, em levar a cabo sua tarefa.
Algo semelhante acontece no piso superior do espaço, que hospeda Before the Beginning and After the End (Antes do início e após o fim), uma instalação do artista Patrick Tresset centrada em torno de cinco rolos de papel em grande formato cobertos de desenhos esferográficos, que vão desde anúncios, rabiscos e retratos do “homem de Leonardo” até a superfície explodida de um icosaedro. Estes foram rastreados, a partir de um vasto conjunto de imagens escolhidas pelo artista, por dois robôs de rodas, do tamanho de uma tartaruga, e que possuem canetas acopladas às garras. As mesas nas quais os manuscritos são exibidos foram equipadas com pedestais embutidos e pequenas plataformas em que uma série de documentos, artefatos e obras de arte está à mostra. Flechas amazônicas, livros raros, uma carta de Einstein para Freud, esculturas de De Chirico e Schlemmer, Paolini e Roth: a disposição dos objetos sugere uma organização arquivística rigorosa, mas poucos pontos em comum podem ser deduzidos em meio aos desenhos esferográficos coloridos. LALALALALALALLALALALALALALALALA
Essa sala lembra também um museu tomado por robôs. Uma narrativa parece estar implícita na escolha e disposição dos objetos: mas não pode ser deduzida, e o espectador fica se perguntando que experimento estava em curso, que investigação foi deixada por resolver no momento do apocalipse robótico. Categorias lógicas e redes semânticas parecem falhar gradualmente e se dissolver, uma vez que os atores humanos já não estão mais no centro do palco. Por toda a duração da exibição, os dois robôs minúsculos estão no trabalho improvisando rabiscos pretos em um sexto rolo de papel exibido ao fundo do espaço expositivo.
Outro edifício dentro do complexo da Fundação abriga a terceira parte da exposição: um conjunto de 11 “configurações” de um Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, que consiste nas cabeças de bronze esculpidas de mais de 60 figuras da história e do pensamento ocidental – de Jung a Snowden, de Lovelace a Fukuyama. Cada configuração reúne uma seleção de personagens em uma reunião imaginária em torno de um tema específico (inteligência artificial, trans-humanismo, fim dos tempos), ligando suas cabeças com hastes de metal em uma estrutura não muito diferente do modelo de uma molécula. O resultado geral é cativante e visualmente impressionante, especialmente quando o sol do final de primavera transfigura o armazém recuperado pela Fondazione Prada em um lugar de culto pós-apocalíptico com sua variedade temática de santos, cada um correspondendo a uma virtude, um milagre ou uma forma de martírio. E, no entanto, em termos nominais, essas configurações oferecem ao público pouco mais do que um exercício de “menção de nomes famosos”. Parecem implorar por um detalhista e bom observador que aponte suas deficiências: por que há tão poucas mulheres e pessoas não-brancas? O que liga Carlo Rovelli a Isaac Newton, além de fama? Por que Valerie Solanas não está ao lado de Olympe de Gouges na seção End of Man (Fim do Homem)?
Dentro do contexto da exposição de Macuga, no entanto, essas obras adquirem um subtexto muito mais sombrio: são, afinal de contas, cabeças cortadas, trespassadas por hastes de metal e mantidas em configurações secretas num silo subterrâneo. Deve ter havido uma lógica para os seus agrupamentos e para a sequência de desenhos dos minúsculos robôs; e também para as divagações do androide sentado na paisagem lunar do museu vazio. Mas qualquer sentido que isso tudo poderia fazer só duraria enquanto a humanidade durasse – o que, Macuga parece sugerir, não será tanto assim.
História e política não andam separadas
Nascida em Varsóvia, mas baseada em Londres, a artista Goshka Macuga tem nas “tapeçarias” de grande escala sua marca registrada. A produção dessas obras se dá a partir de extensa pesquisa de arquivo a partir da qual ela identifica e se apropria de fotos, livros, filmes, textos e outros materiais que passarão a compor suas colagens. Instaladas como murais públicos, essas peças interferem na arquitetura dos locais onde são exibidas, ao mesmo tempo que provocam reflexões acerca das condições de possibilidade dos eventos e instituições que lhe abrigam. Intersectando história e política, declarações públicas, fontes de financiamento e personalidades envolvidas, elas apontam para as contradições, tensões e ambiguidades instrínsecas aos sistema de arte e sua relação com as realidades político-econômico-sociais das quais fazem parte. Of What is. That it is; Of What is not, That it is not 2 (2012), por exemplo, foi exibida em Cabul, ao mesmo tempo que tropas militares americanas e a NATO (North Atlantic Treaty Organization) estavam estacionadas na cidade, provocando reflexões sobre a ocupação estrangeira.
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