Venerado, mas pouco lido

Mário Pedrosa e sua mulher, Mary (ao fundo), no apartamento de Ipanema, 1981- Foto: Bel Pedrosa
Mário Pedrosa e sua mulher, Mary (ao fundo), no apartamento de Ipanema, 1981- Foto: Bel Pedrosa
A recepção de Mário Pedrosa, o grande crítico brasileiro do século XX, viveu dois momentos: no primeiro, entre os anos 1970 e 1980, houve seu resgate por meio das compilações realizadas por Aracy Amaral. Nos anos 1990, deu-se a consolidação do legado, graças aos volumes sob os cuidados de Otília Arantes. No espírito reinante de revisão do século XX, predominava a especificação de sua contribuição histórica e das engrenagens de seu pensamento.

A editora Cosac Naify lança agora duas compilações de ensaios de Pedrosa: uma sobre artes plásticas, outra sobre arquitetura, organizadas por Lorenzo Mammì e Guilherme Wisnik, respectivamente. Como as gerações jovens responderão a seus escritos? Como não sucumbir à mitificação de Pedrosa, hoje mais venerado do que lido? Criador de expressões lapidares como a “condenação ao moderno” e o “exercício experimental da liberdade”, não raro as vemos abusivamente repetidas, slogans cujo fim para alguns parece ser tão somente o de encontrar uma escada rumo à institucionalização. Por que Pedrosa nos parece tão atual?

Relativizemos o “Pedrosa amigo de Calder”, o “Pedrosa das teorias da Gestalt”, o “Pedrosa que trocou Portinari pelo concretismo”. Não nos ajudam nem o surrado recurso à intimidade, nem a inexatidão (princípios formalistas já eram correntes aqui, como exemplificam as referências de Sérgio Milliet a Roger Fry), nem o maniqueísmo (ele se afastou de Portinari, mas não do modernismo). Pedrosa pertence a um círculo composto por figuras que vão de Mário de Andrade, Drummond, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Milliet, Luís Martins e Frederico Morais àquelas hoje tidas por menores, como Antonio Bento, Jayme Maurício e José Geraldo Vieira, que superou o crítico “literato-diletante”. Sua originalidade – composta de mobilidade geracional e ambição histórico-intelectual –, permitiu-lhe assimilar indiretamente 1922 sem renunciar ao engajamento à arte abstrata.

Conferiu à modernidade uma amplidão fluida, mesmo quando comparada a Milliet e Martins (em ambos, a questão social nos anos 1940, apesar de tratada com sofisticação, guardava certa elegância janota) e, diferentemente de Maurício e Bento (por mais que eles se mostrassem atentos às obras), extrapolava o juízo de gosto pontual. Seu espírito trotskista de “revolução permanente” permitira-lhe um estado de contínua transformação, a ponto de conversar com uma terceira geração de artistas que denominaria “pós-moderna”.

Mário Pedrosa com tela de Milton Da Costa, 1961, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, na época dirigido pelo crítico - Foto: Reprodução
Mário Pedrosa com tela de Milton Da Costa, 1961, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, na época dirigido pelo crítico – Foto: Reprodução

O primeiro marco se dá no biênio 1948/1949. No ajuste de contas consigo mesmo, ele tenta simultaneamente reposicionar-se diante de Portinari e conquistar uma personalidade autoral, alcançada no texto sobre Calder de 1948. Até então, apesar de seu entusiasmo com Calder, Pedrosa não conseguira nem resolver o antagonismo arte social x abstração, nem definir uma voz própria em relação ao escultor norte-americano (os celebrados textos anteriores são basicamente transcrição do ensaio de Sweeney publicado pelo MoMA); no mesmo período, malgrado sua aprovação dos murais abstratos de Cicero Dias em Recife, a abordagem é titubeante. A escultura monumental de Calder permitira-lhe identificar uma presença pública de vigor semelhante ao da arquitetura, alternativa à opção corrente pelo muralismo, visão que reverberaria em sua leitura do concretismo nos anos 1950.

O Pedrosa pós-golpe de 1964 alterna grandiosidade e rarefação. A distância geográfica do exílio, conciliada à eventual perda de fôlego, não deram muita chance para responder a boa parte da produção aqui surgida pós-1968, exceto àquela com laços mais ou menos estreitos com a Nova Objetividade, o concretismo e o neoconcretismo. Contudo, são nessas circunstâncias que ele não só reafirma sua crença no “exercício experimental da liberdade”, vendo em Antonio Manuel a ação comportamental, política, existencial e artística transgressora do sistema, como, em seu último vislumbre, o Museu das Origens, mergulha na história plástica da civilização brasileira, em uma espécie de reencenação da nossa primeira aventura modernista. Era involuntariamente uma paródia (no sentido marxista) segregada ao limbo da utopia, mas ainda assim o último ato de um pensar largo e heroico do país, no momento em que a abertura anunciava mais uma vez a urgência em refundá-lo.


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