“Redemoinho” retrata cidade operária de Minas Gerais

Cena de "Redemoinho". Foto: Walter Carvalho
Cena de “Redemoinho”. Foto: Walter Carvalho


Entre as idas e vindas dos trens que cruzam Cataguases, dois amigos se reencontram, depois de muitos anos, na cidade operária do interior de Minas Gerais. Faltando poucas horas para a ceia de Natal, eles dividem reminiscências que desencadeiam um clima de tensão. Afloradas por goles copiosos de
cerveja essas memórias reprimidas aos poucos evocam uma questão central do filme Redemoinho: partir ou permanecer?

Dirigido por José Luiz Villamarim, o longa-metragem, que chegou aos cinemas do País no último dia 9, tem a narrativa centrada nesse reencontro entre Irandhir Santos (Luzimar) e Júlio Andrade (Gildo). Amigo de infância de Luzimar, Gildo partiu para São Paulo em busca de uma vida mais confortável. Sem a mesma pretensão, Luzimar nunca deixou sua cidade natal. Trabalha numa fábrica de algodão como tecelão e leva uma vida modesta ao lado da mulher (Dira Paes).

Vencedor do prêmio especial do júri do Festival do Rio em 2016, Redemoinho é o primeiro trabalho para o cinema de Villamarim. Celebrado como um renovador das linguagens da TV, o diretor mineiro está por trás de sucessos recentes da TV Globo como as séries Justiça, Amores Roubados e a novela das 21h Avenida Brasil, uma das campeãs de audiência da história da emissora carioca. Sua estreia no cinema reflete esse perfil ambicioso: Redemoinho é baseado em dois contos do segundo volume de Inferno Provisório, do escritor mineiro Luiz Ruffato, Amigos e Demolição.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Villamarim falou sobre sua identificação com a obra do escritor: “O livro me encantou porque o Ruffato escreve com muita propriedade sobre o universo do trabalhador. O texto fala desses milhões de brasileiros que são invisíveis, aquele tipo de personagem que quer ascender, mas está condenado ao que o autor chama de ‘inferno provisório’”.

O escritor, que nasceu em Cataguases e, antes de se consagrar no mercado editorial, trabalhou como torneiro mecânico e operário têxtil, fala sobre a concepção da obra: “Nossa literatura tem retratado muito bem o mundo urbano das classes alta e média e também dos bandidos, mas dos trabalhadores não. Pensei que, com a minha experiência, eu poderia escrever sobre esse estrato da sociedade”.

Cena de "Redemoinho". Foto: Walter Carvalho
Cena de “Redemoinho”. Foto: Walter Carvalho


Villamarim afirma que teve passe livre para fazer
Redemoinho à sua maneira. “Na adaptação você tem que se libertar. E o Ruffato nos deu total liberdade para isso”, diz. Questionado se uma adaptação deve seguir fielmente o original, o escritor afirma: “Eu ficaria extremamente frustrado se todas as pessoas lessem a minha obra da mesma forma. O filme tem o olhar e a experiência de vida do diretor, junto com a de todos que participaram das filmagens. Seria de uma estupidez abismal querer que todo esse conjunto de coisas obedecesse a algo que está apenas na minha cabeça”, defende.

Acostumado com o universo da televisão, Villamarim faz observações sobre as singularidades do cinema:  “A TV tem algo de reiteração, de repetição. Então foi bom fazer esse exercício cinematográfico, de filmar uma história concisa, mais fechada. Eu adoro o título de um livro do Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, porque acho que o cinema tem a ver com isso. Essa imagem da escultura é bonita porque você pega um bloco e vai limpando, esculpindo mesmo”.

A opção por uma narrativa minimalista é uma característica comum ao filme de Villamarim e ao livro de Ruffato. O escritor, aliás, afirma que quase sempre está mais interessado em descrever situações do que na trama em si. Algo que, diz ele, também é perceptível em Redemoinho. “Ele, evidentemente, segue para contar uma história, mas transborda a trama. Há filmes que são o contrário, o diretor conta a história inteira, você sai do cinema e não tem mais nada para fazer.”

Em sua busca por formas e plano precisos, Villamarim se considera um formalista: “Hoje vivemos em um mundo de excessos. Filma-se muito, corta-se muito e pode-se errar à vontade porque não tem mais película. O mundo está muito excitado. Hoje há quase um desrespeito com o plano e a posição da câmera”, defende.

Em Redemoinho, chamam a atenção os enquadramentos da cidade de Cataguases. Imagens que destoam da tradicional imagem barroca do Estado, com suas igrejas e montanhas. O que surge na tela é uma “Minas profunda”, como afirma o diretor. “É uma cidade plena da dureza que emana dessas cidades operárias, que são todas iguais, um ambiente austero, de pessoas condenadas àquela terra. Foi isso que me encantou na literatura do Ruffato”, diz.

Cena de "Redemoinho". Foto: Walter Carvalho
Cena de “Redemoinho”. Foto: Walter Carvalho

 

Essa rigidez também se manifesta no silêncio que impera no filme, já que nele não há canções ou trilha incidental. Villamarim conta que, ao viajar até Cataguases e entrar nas fábricas, percebeu que o barulho do local impedia qualquer tipo de diálogo. “A ausência da música é um jeito de não guiar o espectador. A música não deixa de ser uma bengala, no bom e no mau sentido. Foi então que decidi criar essa trilha sonora do som ao redor: a chuva, o trem, o rio, a fábrica.”

Também em entrevista por telefone, Júlio Andrade reitera que os ruídos são como personagens do filme: “A crueza do som ambiente faz com que o espectador seja levado para dentro da história. É um filme sem pressa, muito preocupado com as sensações”, diz.

Para além do som aflitivo da tecelagem, a ferrovia que cruza a cidade é outro elemento central, como aponta o diretor: “O trem passa dentro das casas, com a ideia de fuga, de partida, que faz parte do livro”. Ruffato reforça a ideia:  “O trem é uma ótima simbologia, porque ele passa, mas não permanece. Toda discussão que há no livro é exatamente deste não lugar ocupado por quem não tem dinheiro no Brasil. Porque no fundo tanto faz quem partiu ou quem ficou. É a mesma desilusão, a mesma desesperança de continuar sendo pobre”, afirma.

Para recriar esse universo de proletariado decadente foi essencial o desempenho do elenco, que, além de Santos e Andrade, conta com Cássia Kiss Magro, como mãe de Gildo. “Prezo por atores que conhecem bem seu ofício e estão dispostos a enlouquecer, a cruzar a linha e se reinventar”, diz Villamarim.

Profissional de grande êxito na TV, o diretor diz que, com a explosão das séries norte-americanas, as produções brasileiras têm evoluído. “Ela (a TV) tomou um sacode para o bem. Antes, a novela era um hábito, mas hoje, se a trama não dá certo, imediatamente cai o Ibope, porque o telespectador tem acesso a tudo na Internet. Obviamente, ninguém sabe exatamente o que o público quer, mas é preciso respeitá-lo e oferecer boas histórias”, conclui.


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