“Trumbo: Lista Negra” revisita o Macartismo e mostra duas faces dos EUA

Crédito: divulgação
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Em um dos debates que antecederam a votação de Iowa, na série de primárias que decidirão os candidatos presidenciais dos EUA, o republicano Ted Cruz, senador pelo Texas, acusou o magnata Donald Trump de ser o detentor dos valores nova iorquinos (na visão de Cruz, associados à promiscuidade, como o aborto e o casamento LGBT), ao passo que o próprio sim seria o porta voz dos valores da “América Profunda”.

Para quem vê de fora (dos EUA) talvez o discurso da “América Profunda” beire o patético e cheire a um conservadorismo atrasado e envelhecido. Mas foi um discurso semelhante a esse que colocou um país em pânico e abriu espaço para o Macartismo nos anos de 1940 e 1950.

O referido movimento, surgido na década de 1940 a partir da suspeita de infiltração comunista no exército e na sociedade americana, gerou uma caça a pessoas comunistas e/ou simpatizantes da esquerda. Hollywood não esteve fora do alvo, e é sobre isso que o filme “Trumbo: Lista Negra” fala.

Roteirista e escritor, Dalton Trumbo era ligado ao partido comunista e, ao lado de outros nove importantes de Hollywood, é obrigado a depor no congresso americano acerca de sua situação política e delatar quem estiver nela envolvido. Não o faz e acaba por ser preso. O episódio o coloca na chamada “Lista negra de Hollywood”, na qual atores simpatizantes com o comunismo e a esquerda estariam inclusos e seriam assim impedidos de trabalhar.

Trumbo e seus pares também acusados são diversificados. O protagonista é peculiar: óculos chamativo, bigode marcante e uma personalidade fora do comum: ao longo do filme é mostrado incessantemente trabalhando dentro de sua banheira. Ele também não é um galã de cinema e é casado com uma mulher muito mais jovem. Aspira um país mais igualitário e consegue convencer sua pequena filha disso, tanto que mais tarde a garota segue seus ideais e passa a lutar ao lado dos negros pelos Direitos Civis. Alem de tudo, é rico. Comunista e rico.

Do lado oposto a Trumbo e seus pares está a Hollywood que apóia o Macartismo e é abertamente anticomunista. Na época, diversas figuras proeminentes fizeram parte dela, como o cineasta Elia Kazan e o ex-presidente Ronald Reagan. O filme no entanto dá ênfase a duas figuras em especial: John Wayne e Hedda Hopper. O discurso deles é uníssono e inflamado: o comunismo é uma ameaça a América, e quem pactua com ele deveria ir viver na União Soviética (essa última soa familiar a muitos brasileiros).

O projeto de país defendido por esse grupo é monocolor e padronizado: em um dado momento do filme, Hedda Hopper discursa para seus pares: além de um nacionalismo exacerbado e das palavras de ordem contra um inimigo comum, percebe-se que os ouvintes da platéia estão todos com o mesmo chapéu e vestidos de forma igual (além de serem todos homens e brancos). Apesar da idade, Hopper é elegante e bem vestida, guarda algo de sensual e é aparentemente amigável e agradável. O modo como se dirige aos outros, inclusive seus inimigos, é sempre de início afetuoso. Conforme esbarra em dificuldades de persuasão ou na necessidade de impor seu pensamento, Hopper se torna agressiva e ameaçadora.

Já Wayne, consagrado pelos seus personagens em filmes de faroeste, representaria o porta-voz do pensamento norte americano conservador, uma espécie de soldado da causa. Ora, o velho oeste foi simplesmente o momento de expansão de todo esse “projeto nacional” americano, sendo o cowboy a representação dessa expansão, o que combateu em nome desse pensamento. O célebre ator, conforme demonstrado na cena em que confronta Trumbo, não aparenta ter grande conhecimento da real situação do país e tampouco esteve lutando na segunda guerra, da qual se reivindica vencedor. Ele é simplesmente um cruzado, um guerreiro, alguém que difunde esse pensamento pelo país afora muitas vezes apenas reproduzindo um discurso pronto, sem muita reflexão e na base da truculência.

Trumbo se vê como mais uma vitima de um discurso que tinha como objetivo promover a segurança do país mais livre do mundo. Ele é vitima, pois, de um pensament binário, no qual ou se está ao lado dos EUA, ou se está contra ele. Ao depor no congresso, Trumbo tenta construir uma brilhante defesa, mas as únicas respostas admitidas pelo congresso são o “sim” e o “não”.

Depois de meses preso, o protagonista é impedido de trabalhar. Não se dá por vencido e continua a escrever roteiros e vender para o cinema, embora sempre usando nomes de outras pessoas, nem sempre existentes. Passa a trabalhar também para uma pequena produtora, que com pouco dinheiro, produz filmes de qualidade duvidosa. Roteiros de filme com alienígenas, monstros e toda a sorte de variedades estão entre os produzidos. Mas Trumbo contribui com a sua genialidade e escreve filmes bons. Até ganha Oscar, mas não recebe porque perdeu o direito ao seu nome. O premiado acaba por ser o testa de ferro utilizado pelo roteirista, que nem sempre existe.

Seu caso não foi isolado. Assim como Trumbo, muitos outros acusados pela lista negra continuaram trabalhando e escrevendo, sempre usando outros nomes. A indústria do cinema, longe de ser campo de um pensamento só, é apresentada aqui como um território de disputa. A qualidade dos filmes é igualmente diversificada. Em um dado momento, quando um aliado do anti comunismo ameaça boicotar a produtora que emprega clandestinamente Trumbo, o dono desta (brilhantemente vivido por John Goodman) fica furioso e ameaça matar o chantagista, dizendo que seu verdadeiro público são “as prostitutas e os bêbados”. Nem todos os americanos são cidadãos de bem, como querem os defensores do macartismo.

Com sua genialidade, Trumbo dribla um pensamento soberbo, senhor de si e inquisidor e acaba provando que o projeto que o criminaliza é uma grande mentira. Os valores da “América profunda”, para usar as palavras de Ted Cruz, jamais se aplicaram às prostitutas, aos bêbados, aos comunistas, aos negros e mais que isso, nunca funcionaram. Falharam. Em nome da luta contra um inimigo nem sempre existente, o máximo que se alcançou foi o arruinamento de vidas e o sofrimento alheio. Não muito diferente do que os EUA por vezes fazem em países estrangeiros.

Não à toa que o próprio presidente Kennedy, ao assistir o premiado Spartacus, filme que em definitivo salva Trumbo e põe em xeque a fábrica de absurdos do macartismo, o elogia e diz ser um grande filme, tudo isso em rede nacional. Hedda Hopper assistia tudo de sua casa. A antes arrumada e vaidosa senhora parece envelhecer ao ouvir tudo aquilo. Sob um olhar incrédulo, é como se uma porção de décadas lhe tivesse atravessado. Ao seu redor, diversas honrarias e prêmios que recebeu ao longo da vida decoram o ambiente. Os louros do passado de Hopper, como os dos EUA, foram forjados a partir de mentiras. E o semblante envelhecido de Hopper, retratado no momento final do filme, mostra que por trás de um discurso convincente e inflamado, não resta nada menos que a decrepitude.


Comments

2 respostas para ““Trumbo: Lista Negra” revisita o Macartismo e mostra duas faces dos EUA”

  1. Avatar de Ionadir Rodrigues
    Ionadir Rodrigues

    Com efeito, para além do fato histórico e, portanto, situado em determinada época, datada, o filme permite à reflexão de um contexto típico, uma forma típica de enfrentamento político e seus elementos: a elevação de certos valores a conjunto natural bens morais, capazes de definir ações e caráter num quadro maniqueísta; a manipulação da grande imprensa (sob a forma de seus colunistas); a intolerância sobre as escolhas e diferenças políticas. Menos que o fato histórico, o filme nos oferece um quadro típico, um espelho anacrônico com o contexto político brasileiro de hoje.

  2. Engraçado é que em boa parte das críticas que eu li eles deixam claro que o filme é totalmente maniqueísta, visando exclusivamente uma reparação e tratando qualquer pessoa do “lado oposto” aos comunistas como caricata.

    A parte em que vcs citam o Ted Cruz demonstra que vcs não sabem exatamente em que contexto ele quis dizer.Ele falou que os valores de Nova York não são os mesmos de outro Estado, ele nunca disse que os valores nova iorquinos não são “os puramente americanos”.Ele disse que, no contexto do Estado em que eles estavam debatendo.

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