Diários de Bicicleta

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Da esquerda para a direita, Ulysses Freyre, Carlos Lemos e Gilberto Freyre. Recife, 1923. Foto: Acervo Fundação Gilberto Freyre

O cenário é o das cidades pernambucanas do Recife e de Olinda. Dois parceiros de “etnografias de domingo” montados sobre bicicletas, fotografam as casas e logradouros prestes a desaparecer na década de 1920 pelas intensas reformas urbanas promovidas pelo então governo de Sérgio Loreto. Quem lidera os passeios regados a amizades e vivências riquíssimas entre mocambos, ruas e engenhos é o sociólogo, antropólogo e ensaísta Gilberto Freyre. Mas quem dispara a máquina é o inseparável irmão Ulysses, dois anos mais velho.

A partir desses instantâneos, o futuro autor de Casa-Grande & Senzala cria um dos acervos fotográficos mais importantes sobre arquitetura civil de Pernambuco da segunda década do século XX. Pioneiro no uso de fotografias como fonte primária de pesquisa no Brasil, ele se utilizaria delas como esteio de investigação para muitos de seus livros e teorias. 

Uma relação simbiótica
A família Freyre, apesar de pertencer à elite econômica de Pernambuco, estava em crise financeira. A miséria assolou o sertão pernambucano já nos anos anteriores à década de 1920. Contraditória e paralelamente, a urbanização cresceu a olhos vistos, com as modificações ocorridas sob o processo de modernização. Mesmo em meio a essa derrocada, Recife ainda se destacava como um dos mais importantes centros políticos e financeiros do País. Para a cidade, fazer um acordo com os projetos comerciais que investiam principalmente na transformação da área do porto, muito impactada por reformulações arquitetônicas, foi também uma maneira de manter as aparências.

Nesse momento crítico, as famílias herdeiras da cultura do engenho e da casa-grande tinham de trabalhar pela subsistência,  mas não perdiam a pose. Com os Freyre não foi diferente. Em finais do século XIX, o estado já sofria com a queda da produção e consumo de açúcar; e a imposição da monocultura fazia a importação de produtos de consumo básico aumentar drasticamente. Nessa realidade, somente um filho de cada vez poderia estudar fora. Ulysses trabalhou por longos anos como gerente no International City Bank of New York no Recife. Deixou Recife em 1913 para estudar nos Estados Unidos, onde fez mestrado em Química na Baylor University, no Texas. Mas em 1918 voltou ao Brasil. Largou os estudos (que depois retomaria, com um doutorado) para dar chance ao irmão mais novo de vivenciar o mesmo que ele no exterior.

O trecho desta carta mostra bem sua disposição:

Carta de Ulysses Freyre a Gilberto Freyre
Waco, Texas. 22.05.1916.

Meu caro irmão e amigo, Gilberto – Saúde e Felicidades

Foi com grande alegria e contentamento que recebi a tua cartinha datada de 22 de abril e apresso-me logo em respondel-a. (…). Ultimamente, caro Gilberto, tenho pensado seriamente sobre a tua vinda aqui, e a respeito disto já escrevi algumas linhas a meu pae. Julgo que devias fazer todo o possível para vires, pois não podes avaliar quanto aproveitaras com tua estadia aqui por alguns anos. (sic)

 

Sem essa oportunidade concedida de certa maneira pelo irmão, talvez Gilberto não tivesse desenvolvido carreira tão brilhante. Foi, então, aos Estados Unidos e, como Ulysses, formou-se na mesma universidade. Logo depois, em 1922, tornou-se mestre em Ciências Sociais pela Columbia University, em Nova York. Seus artigos e livros dessa época descrevem a convivência com a nata intelectual norte-americana, como, por exemplo, a poeta Amy Lowel, o antropólogo Franz Boas e o diplomata e intelectual pernambucano Oliveira Lima, tão presente em seu percurso. Após concluir os estudos, viajou para a Europa, onde pôde acrescentar novas ideias ao repertório de cientista social e ensaísta. Seu périplo incluiu Paris, Berlim, Munique, Nuremberg, Londres, Oxford e Lisboa. Nessa viagem, passou a dominar os conceitos de patrimônio sob uma perspectiva museológica.

Após cinco anos de ausência, volta à terra natal no começo de 1923. Com olhos quase de estrangeiro, vê o Recife completamente arrasado no traçado urbano. Chocado, sente a necessidade de documentar em imagem o que poderia ainda ficar de pé. Ao mesmo tempo, recebe a missão de organizar e idealizar o compêndio de comemoração dos 100 anos do Diário de Pernambuco, jornal para o qual escrevia uma coluna semanal como correspondente. É quando idealiza o Livro do Nordeste (não confundir com o livro Nordeste, que viria a escrever anos depois), com artigos de intelectuais e bicos de pena de artistas nordestinos.

Lançado em 1925, o Livro do Nordeste (hoje disponível apenas em versão fac símile em pouquíssimos acervos no Brasil) pode ser considerado um marco do início das discussões sobre o regionalismo e quase um manifesto regionalista antecessor ao verdadeiro e polêmico Manifesto Regionalista de 1926, só publicado e conhecido em 1952. Para este livro comemorativo, Gilberto convida autores como Carlos Lyra Filho; Oliveira Lima; Annibal Fernandes; Octavio de Freytas, que escreve sobre medicina; Luiz Cedro, deputado que lança as primeiras luzes sobre as inspetorias de monumentos em Pernambuco; Odilon Nestor, que abrigou, em sua casa, as discussões sobre o Congresso Regionalista; Manuel Bandeira, o poeta; Joaquim Cardoso; e H. Castriciano, com texto sobre Nisia Floresta, escritora e feminista pioneira. Um dos principais capítulos, intitulado “Vida Social do Nordeste”, é parte da dissertação de mestrado defendida por Freyre nos Estados Unidos.

A publicação contou também com 92 desenhos do artista gráfico Manoel Bandeira, homônimo (mas com “o”) do autor de Libertinagem. Ele usou amplamente como base as fotos de Ulysses Freyre. Naquele tempo, impressões fotográficas em publicações deste porte eram caras e nem sempre viáveis em termos de larga produção. Além disso, a fotografia ainda não inspirava a mesma confiabilidade e crédito que a gravura, bem quista nos meios de comunicação.

As discussões sobre patrimônio
Há relutância em afirmar em qual categoria Ulysses Freyre poderia ser colocado na fotografia. Era amador sim, mas assumiu o papel de fotógrafo documentarista de arquitetura profissionalizando sua prática, mesmo que para uso restrito ao âmbito de estudos e trabalho do irmão sociólogo. Documentou, como um pesquisador, a cidade, o mobiliário, as figuras humanas. Enclausurar Ulysses em um tipo ou classe de fotógrafos seria reduzi-lo. Ele foi um importante vetor de trabalho para o escritor de Sobrados e Mucambos; seu terceiro olho, por assim dizer. Os irmãos tiveram nas fotografias o início de uma trajetória movida por ternura, amizade e verdaderia parceria. Se a autoria das imagens era de Ulysses, o foco vinha de Gilberto, com seu olhar determinante, centralizador. Isso explica por que houve um sombreamento da figura do irmão mais velho em todo o processo. Foi algo acordado mutuamente, mas de maneira natural na relação entre os dois. O que não se sabia até agora era que essas imagens deram início prático às primeiras reflexões do Freyre caçula sobre o patrimônio histórico edificado em Pernambuco. Elas foram o ponto de partida para a proposta de um inventário sobre monumentos para os órgãos subsetoriais da Inspetoria Estadual de Monumentos em Pernambuco, criada em 1928 por Annibal Fernandes, jornalista e amigo de Gilberto Freyre por vários anos. Essa inspetoria foi uma das primeiras no Brasil, juntamente com as da Bahia e de Minas Gerais, já no final da década de 1920.

No período da Primeira República (1889-1930), as relações entre intelectuais no País – principalmente na década de 1920 – foram marcadas pelo pensamento comum em relação à brasilidade. Mário de Andrade, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre foram os precípuos intérpretes de um Brasil repleto de vicissitudes, em um momento em que os pensadores se relacionavam significativamente com o poder político. E o viés foi o patrimônio, certamente. 

Pacto NA BOEMIA
Pouco antes da volta de Gilberto para o Brasil, Ulysses comprou a Casa do Carrapicho na Estrada do Encanamento, entre os bairros de Casa Forte e Casa Amarela, famosa por ser o lugar onde os dois viveram durante muitos anos. Era um espaço boêmio, onde promoviam festas e bailes de Carnaval. Ia tão bem aquela vida que fizeram um pacto de solteirões. O afeto que os unia e a representação que a Casa do Carrapicho tinha para eles eram temas recorrentes nos artigos de Gilberto. Não tinham segredos um com o outro. Porém, Gilberto sentiu-se traído quando soube que Ulysses raptou a prima e casou-se com ela sem lhe avisar. Ficou então sozinho na Casa do Carrapicho, onde finalizou a obra Casa-Grande & Senzala, mas sob muita tristeza e sofrimento. Lá se sustentou enquanto terminava o livro, vendendo o que plantava. Era uma casa-sítio, onde colhia o que semeava, como jambos, mangas, abacates, bananas. Hoje a casa já não existe mais. Foi demolida para dar espaço a uma avenida.

Ulysses morreu em 1962, 25 anos antes de Gilberto. Este escreveu uma carta no mesmo dia homenageando o irmão, publicada no Diário de Pernambuco. Eis alguns trechos:

 Meu irmão Ulysses, que acaba de falecer neste seu velho Recife, era a modéstia em pessoa. Êle seria o primeiro a estranhar que eu lhe dedicasse um artigo a propósito do seu amor à cidade em que nascemos e crescemos juntos (…)

Há dêle fotografias notáveis do Recife. De igrejas antigas e de velhos sobrados que os estetas oficiais vinham querendo destruir de todos os modos, para substituí-los por imitações do Rio e de São Paulo. Também de janelas mouriscas, que já não existem. De azulejos que já desapareceram. De negras e de mulatas de Santo Antônio e de São José. E, ainda, de móveis: todo um numeroso grupo de móveis antigos que, em minha companhia, êle fotografou:  fotografias que constam agora do arquivo da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Não são fotografias de fotógrafo de gabinete de identificação que em vez de identificar somente pessoas identificasse também casas, igrejas e móveis. São fotografias que primam, sem dúvida, pela exatidão; mas que se destacam, também, pelo que nelas há de amor pelos assuntos e de compreensão dos seus característicos da parte do artista.

Quase tôdas as fotografias que nos deixou são do Recife e de Olinda. Representam manhàs inteiras de trabalho paciente e amoroso, em que se apurou o afeto fraterno que nos uniu, na ternura filial dos dois pelo Recife. Pela materna cidade do Recife. (…)

Ficou célebre sua fotografia da casa-grande do Engenho Megahype. É uma fotografia com qualquer coisa de água forte. Uma admirável paisagem pernambucana. E vários dos desenhos de Manoel Bandeira para o livro comemorativo do 1o centenário do Diário de Pernambuco basearam-se em fotografias de Ulysses Freyre. Ele fôra, aliás, quando menino, discípulo de desenho de Telles Junior. (…)

Repito que nos ligou um profundo afeto fraterno. Quando regressei a Pernambuco, depois de muitos anos de estudo nos Estados Unidos e na Europa, foi em Ulysses que encontrei a melhor compreensão para meus difíceis problemas de reajustamento a um meio que por vêzes se encrespou contra mim com as suas piores mesquinharias. (…)

Êsse homem, assim versado em letras inglêsas, dissimulava seu saber por um excesso de modéstia que foi sempre um aspecto inconfundível do seu modo de ser bom e de ser simples. Foi autenticamente bom e franciscanamente simples. Bom para a família e bom para os amigos. Esqueceu-se quase sempre de si mesmo para cuidar da família e lembrar-se dos amigos.  (…)

Quanto a mim, devo-lhe em grande parte os estudos no estrangeiro. Foi quem auxiliou meu Pai com as despesas de tais estudos. E foi quem me amparou a difícil reintegração no Brasil. Minha vida estêve em certo tempo tão ligada à sua que foi como se vivêssemos com o mesmo corpo e a mesma alma, as mesmas aventuras de mocidade. Foi isto principalmente nos dias em que moramos juntos na sua casa do Carrapicho, ainda solteiros: êle belo e a seu modo elegante, talvez o solteiro mais cortejado pelos pais ricos de moças bonitas de Pernambuco. (…).

Hoje em dia, se Ulysses e Gilberto vissem o Recife e a Olinda que se desmontam ainda mais intensamente do que nos anos 1920, provavelmente ficariam perplexos. O processo de verticalização vem atingindo exponencialmente ambas as cidades em níveis cruéis, se comparados aos do início do século XX, e isso não diz respeito somente ou majoritariamente à modernidade – à época até admirada pelo sociólogo, mesmo sendo defensor do regionalismo. Com certeza os antigos e inseparáveis solteirões ficariam tão indignados que lhes faltaria entusiasmo para sair de bicicleta novamente e fotografar a tão amada e desfigurada terra natal. 

O desmonte das entidades que discutem hoje cultura patrimonial no País oferece munição à destruição de equipamentos importantes para a história brasileira. As discussões sensatas, competentes, sérias e necessárias sobre patrimônio parecem importar muito pouco para as prefeituras, governos estaduais e federal na atual conjuntura. O Ministério da Cultura sucateado e interinamente abandonado é a maior prova dessa negligência.


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