Ler ou não ler “Os Sertões”

O escritor Marcelino Freire. Foto: Luiza Sigulem
O escritor Marcelino Freire. Foto: Luiza Sigulem

– Não leia.
À boca da biblioteca, eu com o livro na mão. Quando o cagarrão insistiu.
– Não leia não. Ele diz aí que a gente é tudo sub-raça. Uma desgraça só.
Mas ele fala aqui de Paulo Afonso. Eu morei lá. Passei por Sorobabé. Conheço Cabrobó.
Outro, à paisana, quase rouba Os Sertões do meu olhar.
– Não creio no que eu estou vendo. Traz cá…
Eu desviando do sertanejo, entre as estantes da universidade. Adolescente, começando o meu curso de Letras. Achando Euclides da Cunha um nobre companheiro.
– Um traíra.
– Ademais um corno.
– Sabia que ele foi chifrado enquanto escrevia essa baboseira?
Viraram machos à minha frente. Logo eu, cambaio. Alucinado com aquela linguagem. Geograficamente lírica. Delírica até. Litúrgica, mediúnica. Futurista. Macunaímica antes de Macunaíma. Vidas Secas escritas por Guimarães Rosa. Uma Bagaceira à la Blade Runner.
Vencida a primeira barreira, chega-me um outro cavaleiro.
– O segredo é pular a parte da Terra, ler só um pouco da segunda parte, O Homem, e ir direto para o que interessa, A Luta.
O que fazer então com o que eu já tinha lido? Com aquela flora tropical? Com as gravuras, em metal, que Euclides da Cunha havia desenhado com as palavras? Com os mulungus rotundos? Com as umburanas?
E tão bela era a imagem do nosso Hércules-Quasímodo.
De longe, gritou-me de novo aquele primeiro vaqueiro, ofendido:
– Desgracioso, desengonçado e torto é o senhor pai dele.
Mas não é exatamente deste autor a frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”?
– O problema está no “antes de tudo”.
– Se quiser entender a humanidade, cabra, vai ler a Bíblia.
O que é o Antonio Conselheiro senão um Móises? As longas barbas grisalhas mais para brancas? A túnica de Azulão? No comando da Favela, ao som do seguinte refrão: “Garantidos pela lei / Aqueles malvados estão / Nós temos a lei de Deus / Eles têm a lei do Cão”.

A verdade é que Euclides da Cunha era um poeta. E é como poeta que eu o leio. E o releio. Até hoje. Vou, dentro de sua clássica obra, garimpar palavras de sangue. Dele roubo para mim, raquítico escritor, as pulsações. Não procuro, nele, definições botânicas, sociológicas. Científicas. É da linguagem artística, humana, que sempre, faminto, me alimento. Para, depois do livro lido, perceber o mundo ao levantar a vista. Fora de qualquer curral, livre, meu pensamento.

*Sertanejo de Sertânia, Pernambuco, vive em São Paulo desde 1991. Escreveu, entre outros, o romance Nossos Ossos (Editora Record), vencedor do Prêmio Machado de Assis em 2014. 


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