O sucesso de um fracasso

O escritor Julián Fuks em seu apartamento, em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem
O escritor Julián Fuks em seu apartamento, em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Ao receber o prêmio Jabuti de Livro do Ano em novembro, Julián Fuks não se limitou aos agradecimentos de praxe e fez um discurso que bem caberia na voz de seus pais, militantes contra a ditadura argentina nos anos 1970. Sinceras e bem articuladas, suas palavras de inconformismo traduziram o que muitos gostariam de dizer sobre a ruptura com o processo democrático e os desmandos do governo ilegitimamente instalado no Palácio do Planalto.

Não à toa, o quarto livro desse jovem autor de 35 anos se chama A Resistência. A um só tempo político, afetivo e metalinguístico, o romance investiga a possibilidade de resgatar sentimentos e fatos do passado com autenticidade. A trajetória de seus pais, psicanalistas argentinos que vieram ao Brasil como exilados, e principalmente de seu irmão, adotado em Buenos Aires, está no centro da narrativa. O narrador, porém, identificado com o próprio escritor, questiona o tempo inteiro suas motivações e sua capacidade de conduzir essas histórias tão delicadas, que são e não são suas. E se debate com a questão ética envolvendo o irmão, que pode ser filho de guerrilheiros desaparecidos e neto de alguma das avós da Plaza de Mayo. “Sei que escrevo meu fracasso” é uma das frases de estranho impacto do livro. O tema do bloqueio narrativo e das complexidades da escrita está em seus romances e contos anteriores, todos também premiados. Em Procura do Romance, de 2011, essa questão é explícita e tratada com obsessão flaubertiana. Histórias de Literatura e Cegueira, lançado em 2007, trata de três personagens caros ao autor, que também dedicaram suas obras a refletir o próprio ato de escrever: Borges, João Cabral e Joyce. Ambos foram finalistas do Jabuti e Portugal Telecom (hoje Oceanos).

Barba longa, que faz contraste com o rosto ainda juvenil, Fuks, ex-jornalista e crítico literário, com mestrado e doutorado em letras, discorre serena e pausadamente sobre tudo isso, fala da parceria com Mia Couto e do livro que vem preparando dentro de uma ocupação no centro de São Paulo. Revela também que o irmão provavelmente ainda não leu A Resistência, mas que aprovou o projeto desde o começo.

CULTURA!Brasileiros – A Resistência se situa numa região semelhante à de livros de autoficção problemática, por assim dizer, como O Filho Eterno, do Cristóvão Tezza, ou Divórcio, do Ricardo Lísias. O que te levou a enveredar por caminho tão delicado?
Julián Fuks – Quem me deu a ideia para escrever esse livro foi o meu próprio irmão. Depois de um processo de terapia familiar ele teve um momento de muita abertura, muita franqueza e no auge desse momento ele disse: você devia escrever sobre isso. Só que aquilo pra mim obviamente não foi assimilado naquele momento como uma missão que eu devia cumprir, e eu estava vivendo tudo aquilo como alguém que vive um momento de intensidade familiar e não como quem vive algo literário que dá para narrar depois. Então eu não levei muito a sério aquele pedido dele, mas anos depois, diante de uma certa paralisia, me dei conta de que ali existia alguma coisa que valia elaborar. Procurei ele nesse momento e disse que ia escrever o livro, afinal. Ele não lembrava mais daquele pedido, mas disse que tudo bem. E foi isso. Para minha surpresa, quem mais começou a construir uma ambivalência em relação ao livro foram os meus pais. Desde o início eles participavam do processo, eu perguntava tudo para eles, queria ouvir de novo as histórias que eles já tinham contado outras vezes, fazia uma espécie de entrevista mesmo. A princípio eles se surpreendiam porque a ficção estava basicamente ausente. Me perguntavam: por que você está tão colado à realidade? O que te impele a esse grau de fidelidade com a realidade? Com o tempo eles foram se envolvendo mais com o projeto e quando apareceram distorções próprias da ficção, falhas de recordação ou algo diferente do que eles lembravam – e eles divergiam muito sobre o passado -, começaram a questionar aquilo, dizendo: não, espera, não foi assim. E começaram a sofrer pelo motivo contrário do que sofriam no início: agora o que era diferente da realidade incomodava mais. Mas eu acreditava que ao fim e ao cabo o livro traria efeitos positivos, e foi o que aconteceu. Porque eu nunca quis fazer autoficção ao estilo Karl Ove Knausgard (autor norueguês, festejado pelos seis volumes autobiográficos de Minha Luta), que se desentendeu com a família inteira em nome da literatura. Mais que isso: brigou com uma cidade inteira. Eu quis que meu livro fosse um ato de entendimento. Não só a realidade atravessa a literatura, mas a própria escrita atravessa a realidade, o convívio, os diálogos familiares, etc. E eu quis incorporar isso ao livro, quis que a coisa se criasse num processo complexo. A minha forma de incorporar não era corrigindo aquilo que eles julgavam equivocado, era assimilando mais discursos, assimilando a crítica ao livro dentro do próprio livro. É um discurso para leitores de maneira geral, mas é um discurso também para a família, também para o meu irmão e por isso saturado de certos cuidados, saturado de certo carinho, porque minha ideia é uma construção afetiva da memória e da experiência.

Mesmo assim, continua sendo um discurso delicado.
Sim, porque ainda que haja um reconhecimento de que a ficção acontece inevitavelmente numa obra narrativa, mesmo que ela se queira fiel aos acontecimentos, o efeito de real permanece, e isso dá intensidade à leitura. E escrever dentro dessa chave tão apegada ao real sobre questões muito pessoais, inclusive de outros que não eu, é sempre delicado.

Mas a narrativa algo titubeante, que se coloca em dúvida o tempo inteiro, acaba amenizando a exposição.
Acho que sim, mas também nestes tempos em que a gente já fez uma reflexão aprofundada do que é a memória e de como se constitui a realidade é muito mais convincente um discurso que se põe em dúvida do que aquele que se afirma convicto sobre os atos do passado. E isso é uma das coisas que menos me convencem na literatura do Knausgard. Porque ele narra como se fosse possível recuperar diálogos específicos da pré-adolescência em riqueza de detalhes; tudo aquilo que deveria parecer realista acaba produzindo o efeito do impossível e o elemento ficcional salta mais nos olhos.  No meu caso, o titubeio me parece preservar algo do funcionamento da realidade e não uma concessão total ao ato de ficcionalizar.

No Fórum das Letras de Ouro Preto, em novembro, você disse que se interessava pela ambiguidade da palavra resistência.

É curioso porque o livro não se chamava A Resistência de início, ele se chamava “O Irmão Possível”. Essa mudança foi uma contribuição enorme, ideia do Leandro Sarmatz, que editou o romance. A partir daí fiz uma espécie de reescrita de algumas passagens, para que elas de fato refletissem um pensamento mais complexo e plural sobre a resistência. Pois não há simplesmente a resistência dos pais à ditadura militar, como se entende de partida; há também a resistência do irmão ao convívio familiar e a resistência de um narrador a encarar de fato essa história e encontrar as palavras para ela; ou seja, a palavra surge em polos opostos, como ato de recusa e de fraqueza, e como intervenção dentro de uma realidade, um ato de força. 

Considerando que seu ponto de vista é colocado muitas vezes com bastante franqueza, chegou a ter receio de cair num certo grau de autoindulgência?
Essa era uma das preocupações do Sarmatz, ele achava menos convincentes as passagens em que o narrador afirmava sua própria impossibilidade, sua tendência ao fracasso, etc. Porque ele achava que as outras partes eram expressivas demais para que nessas se expressasse um fracasso. Também porque ele acreditava no livro, mas eu sempre propus uma ideia ampla do que é esse fracasso, que é um fracasso inevitável, não diz respeito ao sucesso ou insucesso do livro, à existência ou não de leitores, a ganhar ou não um prêmio, mas diz respeito às possibilidades efetivas do discurso de apreender uma realidade e de expressar de fato uma intimidade e de fato aproximar as pessoas. No fundo, o livro exerceu também essa função, me aproximou do meu irmão, me aproximou dos meus pais, criou outros tipos de vínculo, mais complexos.

Seu irmão gostou do livro?
 Talvez ele não tenha lido ainda, mas ele tem uma relação muito positiva com o livro, isso já me tranquiliza. Ele acompanhou toda a trajetória da escrita, as pessoas em volta dele leem, os amigos dele leem, comentam coisas, ele diz que já tem uma clareza do que é o romance, do que está presente lá. Mas ele não se interessa por literatura de modo geral, e acho também que talvez seja uma experiência um pouco intensa demais que ele está adiando: ele vai ler, mas enquanto tem barulho demais em torno disso, talvez ele prefira ficar à parte.

E você não fica ansioso?
Já fiquei, porque de fato o que se narra ali aconteceu, eu entreguei o livro na mão dele quando estava pronto, e depois quando ele foi impresso, mas agora eu já percebi que a gente tem formas muito diferentes de lidar com as coisas e formas diferentes de se manifestar: eu faço isso pelas palavras escritas, principalmente, e ele é um cara de outro tipo de gestos. Mas a gente se relaciona bem dessa maneira.

Você falou numa visão ampla da expressão fracasso e uma das frases do livro é justamente “Sei que escrevo meu fracasso”.
Muito cedo escrevi sobre a impossibilidade de escrever ou sobre o branco e a pobreza criativa. Procura do o Romance é a expressão disso, é a expressão de escrever apesar da impossibilidade, a escrita sobre o que não é possível escrever, fadada evidentemente ao fracasso. Mas é um fracasso que se torna performático e que tem a pretensão de ser outra coisa na hora que vai parar na página. Depois que você expressou aquilo que você tinha de mais evidente na experiência da escrita, que é a impossibilidade, a experiência de uma angústia, decidir o que escrever em seguida passa a ser muito difícil. Escrever precisava ser encontrar algo que tivesse em si mesmo um sentido e uma mesma pertinência. Depois do Procura do Romance meus contos foram todos muito políticos. E quando comecei a escrever esse conto que se tornaria “O Irmão Possível”, em que a questão política estaria colocada, o narrar, o por que narrar e o que narrar se respondiam para mim como uma forma de intervenção no real, no presente, pela política (compreendida no sentido amplo, não panfletário ou partidário). E aí aquele texto cresceu a ponto de se tornar um romance e foi ganhando outras nuances que o tornaram ainda mais político. A política devolve certa pertinência a um narrar que se cansou das suas próprias questões. Isso não faz com que essas questões desapareçam. São pontos de partida fundamentais para tudo que eu faço e para meu modo de pensar a própria literatura.

Você acredita num papel social da literatura? Escrever é agir?
Sim. Acredito de maneira geral que a literatura cumpre um papel social essencial, como reflexão sobre o mundo, sobre a realidade, sobre a experiência, e que toda reflexão é necessariamente uma intervenção. Por outro lado penso também que em determinados momentos de convulsão política, de certo caos social, certo desequilíbrio geral de uma sociedade, a literatura tem que se fazer ainda mais contundente e mais incisiva. Essa é a escolha que eu tenho feito e é a literatura que eu tenho valorizado neste momento. Porque essas coisas são muito fluidas, eu não retiraria do contexto essa visão de literatura, mas, ainda sim, hoje me parece que a literatura tem algo a dizer e deve dizer sobre o momento político brasileiro e internacional.

Seus pais são psicanalistas e há menções no livro ao Winnicott, e cenas de psicanálise em família. Até que ponto a psicanálise informou sua ficção?
A psicanálise acaba sendo quase um mecanismo de elaboração familiar. Ninguém é psicanalista da própria família, meus pais nunca fariam uma coisa dessas. Mas o modo de pensar as relações sempre foi atravessado pela psicanálise e mesmo a questão de como lidar com a adoção se deu a partir de certas leituras, principalmente do Winnicott; decisões como contar ou não, quando contar e como lidar com os silêncios que vão se criando se o filho não quer considerar esse dado da própria existência, como foi com o meu irmão durante um tempo, passavam pela psicanálise. E é uma visão de mundo que contagia minha própria forma de pensar as minhas relações, de fazer interpretações, de conceber sonhos. Curiosamente, meus pais são incapazes de contar uma história apegados ao factual, com um início, meio e fim, e com concordância e coerência interna. Talvez pela psicanálise, mas também por outros funcionamentos do pensamento deles, a tendência é sempre partir para a reflexão, contar algo e rapidamente interpretar aquele algo, oferecer múltiplas possibilidades para aquela ocorrência. As histórias do passado sempre surgiram assim e eu internalizei isso, sou assim também, sou muito incapaz de só contar uma história, fato atrás de fato. A minha forma é buscar o fato e imediatamente colocar em jogo as interpretações possíveis.

Me ocorreu que esse tipo de literatura tem muito a ver com  a literatura argentina, que é mais reflexiva ou ensaística que a brasileira.
A literatura argentina foi muito marcada pela reflexão sobre a própria literatura e sobre a linguagem de maneira geral, com um jogo metafísico constante. A literatura brasileira está mais próxima de uma sociologia, de uma tentativa de compreender a identidade nacional, as desigualdades sociais. Desde antes o Machado de Assis se aproxima da reflexão sociológica e política sobre o País, ou o Graciliano Ramos. Nisso a literatura argentina é muito fraca. O forte lá é essa prática do ensaísmo literário por parte dos escritores. O Alan Pauls, por exemplo, reflete criticamente o Borges, sem santificar as origens da literatura argentina. No Brasil existe muito pouco essa tradição de ensaios sobre o ato da escrita; aqui o ato da escrita está sempre pensado de uma forma individualizada, é sempre a minha forma de escrever. A exceção é o Autran Dourado, que, além dos livros de não ficção, colocava o artesão como metáfora do escritor nos contos.

Você mencionou a resistência, entre outras acepções,  como um ato de força. Foi o que se viu no seu discurso de aceitação do prêmio Jabuti.
Foi um ato muito sincero da minha parte. Ainda que eu esteja em um momento de muita felicidade, acho que é quase consenso que 2016 foi um ano terrível, e eu não queria que isso passasse em branco; era também preciso dar uma atenção para o que houve de ruim e em útima instância produzir uma espécie de intervenção ou uma crítica. Acho muito difícil hoje simplesmente sucumbir a uma normalidade; o que aconteceu tem gravidade suficiente para que a gente não possa se resignar. É preciso declarar, sempre que possível, a anormalidade do que está acontecendo no País, não só em relação à ruptura com o processo democrático, mas porque essa ruptura não tem se refletido num poder exercido com moderação; pelo contrário, o que a gente vê é um governo completamente incisivo, abrupto e violento nas suas decisões e é preciso se contrapor tão rápido quanto possível e sempre que possível a esses atos.

Como fazem as ocupações populares e estudantis, que você tem acompanhado de perto.
Sim. Me chamaram para fazer uma residência artística em uma ocupação do Hotel Cambridge, em São Paulo, uma ocupação de um movimento de moradia, da Frente de Luta por Moradia e do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro). A princípio era algo livre, simplesmente estar lá e a partir daquela experiência escrever algo. Aos poucos percebi a possibilidade de fazer algo mais amplo, um livro que se intitularia “A Ocupação”. Teria alguma relação com o “ocupar e resistir”, palavra de ordem importante no momento, não só no Brasil mas no mundo inteiro. A princípio fui ouvir as pessoas de lá e conhecer suas histórias, saber o que as levou a se envolver num movimento de moradia. Mas aos poucos eu percebi que era mais rico ver não o que precedia a presença delas lá, mas as relações que se criam internamente na ocupação, as relações do movimento como um todo.  Que é um tipo de vivência muito contrário ao individualismo que a gente vê imperando fora dali. Ali tem uma preocupação comunitária e de coletividade que me interessa muito como um contraste com o tipo de vida que a gente leva nas nossas casas de classe média. Nesse prédio de 15 andares, sem elevadores, as pessoas se encontram constantemente, elas mantêm as portas abertas, almoçam e jantam juntas. Óbvio que o livro não se reduz a isso; assim como A Resistência, “A Ocupação” também tem muitos sentidos: há, por exemplo, uma mulher grávida (ou com o corpo ocupado por outro ser), uma situação em que esse jogo de ocupação se multiplica. O ato da escrita e o ato de frequentar essa ocupação passa a ser uma ocupação do próprio narrador. Então a ideia é construir também complexamente essa noção.

Esse projeto tem a ver com seu trabalho ao lado do Mia Couto?
Sim, isso é parte de um programa cultural da Rolex em que eles escolhem pelo mundo sete mentores e sete protegés nas diversas artes. Definiram Mia Couto como o mentor de literatura para este ano, e ele me escolheu para seu protegé por causa, justamente, desse projeto na ocupação. No próximo ano ou dois tenho uma bolsa de produção literária para me preocupar só com isso. Desde então a gente já se encontrou algumas vezes, passou um tempo junto nos Açores, e eu vou para Moçambique de novo agora em março. Uma das propostas também é trazer esse diálogo para o livro. Dessa vez a reflexão sobre o romance, que está em todos os meus livros, vai se dar na forma de cartas ao Mia Couto. A própria noção de realidade e ficção se torna mais complexa, pois uma coisa que está na narrativa pode se negar na hora que eu escrevo uma carta para ele. Idealmente, no final desse processo haveria, dentro do livro, uma carta do Mia Couto sobre o livro.

Você é um admirador dele?
Sou. E me tornei mais ainda. Lia e apreciava os livros dele, mas agora percebi uma sensibilidade forte que ele tem em algumas coisas que eu gostaria de desenvolver eu mesmo, como essa capacidade de captar a história político-social de um país inteiro a partir de histórias especificas dos seus habitantes, e essa sensibilidade para narrar o diferente. Tudo a ver com esse próximo livro, que é um projeto de expansão em direção ao outro, ao contrário do que fiz anteriormente, quando eu falava mais de mim e da minha família.

Então você está quebrando uma resistência sua?
Exato, essa era minha proposta desde o início e acho que nesse sentido ele é um mentor muito rico. Além disso, tem uma linguagem poética que eu aprecio bastante no texto dele e que me interessa para me tornar menos austero na minha forma de escrever, para ficar um pouco mais poético. Curiosamente, ele está indo um pouco na contramão, porque ele próprio quer se tornar um pouco mais seco e menos poético nos livros dele. Então a gente se cruza no meio do caminho.

Considerando todas as questões relativas ao romance, uma que você não toca é justamente a experimentação com o uso das palavras, essa coisa mais poética que você mencionou agora.
É verdade, mas faço questão de não usar uma linguagem depauperada. Mesmo quando eu quero uma literatura política, me parece que é uma literatura feita com a maior precisão vocabular possível. No meu caso, é um processo criativo quase obsessivo, a observação da minúcia na tentativa de procura da palavra exata, na construção de um ritmo, de uma sonoridade, de uma musicalidade para a própria frase. É um trabalho que nem sempre transparece para o leitor, mas que em grande medida está lá. Por isso eu escrevo muito lentamente também, meus livros são curtos e trabalhosos.

Então você é do time do Flaubert?
Sim! Ao ler muitas das cartas do Flaubert e as explicações de como é o ato de escrita para ele eu me identifiquei tremendamente. Claro que escrever como ele já é outra questão, mas o processo de escrita um pouco angustiado e perfeccionista é algo que acaba sendo presente.

Você lê o que escreve em voz alta?
Eu escrevo lendo em voz alta, é uma busca constante por algo que soe bem. Ainda que não pareça soar bem. Há uma construção de rimas internas, não só na frase, mas no parágrafo como um todo. Um cuidado com a reaparição das palavras. No Procura do Romance eu tinha a obsessão de não repetir palavras, de buscar sempre novas maneiras de dizer, porque novas maneiras de dizer te levam a dizer algo novo, o que foi tornando o livro cada vez mais difícil de escrever. Em A Resistência, justamente para não cair nesse grau de dificuldade elevado, o que eu tentei construir foi um jogo a partir da repetição sistemática das palavras para que elas recuperem noções já trazidas antes.

Como você vê essas noções de elitismo e cultura de massa em relação ao desinteresse da maioria dos brasileiros pela literatura?
Vejo com muitos bons olhos a crítica a essa noção discriminatória de alta cultura, baixa cultura, tudo que dê maiúsculas para certa forma de fazer e minúsculas para outra forma de fazer. Por outro lado ainda que eu veja como interessante uma tentativa de aproximação e de mescla desses registros de uma literatura que não se queira numa torre de marfim, que se queira muito mais ligada ao mundo real, às reflexões do presente, acho também que ela não pode se tornar dependente do interesse do leitor. É muito menos interessante uma literatura que se massifica e que simplesmente supre aquilo que o leitor mais gostaria de ler. O que eu vejo como uma tentativa de contraposição a isso é a narrativa com  honestidade, com sinceridade. O Tolstói defendia isso, a sinceridade como um ato essencial da narrativa, o que não significa um apego literal à verdade ou à realidade, mas uma escrita com um certo sentimento, imbuída pela autenticidade da voz do escritor, pela pertinência do seu discurso. Isso me parece que vale a pena um escritor buscar hoje e é algo que os leitores sentem. Em comparação com o Procura do Romance, A Resistência foi muito mais lido, muito mais comentado. Ao sair o resultado do Jabuti, percebi que a informação sobre a existência do livro se expandiu muito e atingiu muita gente, ou seja, mesmo um livro que tinha circulado bem, tinha sido publicado por uma editora grande e bem resenhado nos jornais passa longe ainda de cumprir o seu potencial de leitura. O público leitor do Brasil é pequeno? É pequeno. A gente tem um país com um vasto analfabetismo funcional, um vasto desinteresse pela leitura de livros? Sim, é verdade. Mas, além disso, os nossos livros não estão alcançando o seu próprio potencial, é preciso pensar outras formas de transmissão dessa informação.

Quer dizer, mesmo com toda essa onda de festivais de literatura e mesas de debates, tem um elo vazio nessa corrente entre o leitor e o autor.
É, há uma tentativa de travessia desse vazio. Acho que o autor no Brasil nunca falou tanto sobre a sua própria obra, nunca foi tão chamado a se autoanalisar em público, o que até é meio estranho de se fazer. O escritor não produz simplesmente uma obra, produz um discurso sobre a obra. Ele precisa ter carisma, precisa ter um discurso sedutor e comover publicamente para depois obter o prêmio que é o leitor. Mas é curioso, porque mudou um pouco essa função social do escritor, não só no Brasil, mas na América Latina como um todo. Na década de 1970, você tinha a intervenção política do escritor como algo muito importante – o Cortázar era um exemplo claro disso. E hoje o escritor é uma figura pública por se posicionar em defesa não de uma causa política, mas de si mesmo; em grande medida ele se apresenta nos lugares como um empreendedor que deu certo. A pessoa pode estar interessada em qualquer outra coisa que não literatura e aquele ainda é um exemplo inspirador. É estranha essa diferença. Na verdade, ela é muito significativa da diferença do pensamento político como um todo.


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