O voo da Ubu

As três sócias da Ubu. A partir da esquerda, Florencia Ferrari, Gisela Gasparian e Elaine Ramos. Foto: Divulgação / Ubu Editora
As três sócias da Ubu. A partir da esquerda, Florencia Ferrari, Gisela Gasparian e Elaine Ramos. Foto: Divulgação / Ubu Editora

“Sonoro, visual, curto, estranho, lembra ubuntu, uruca, exótico, palindrômico, sui generis, único. Ubu é tudo isso, mas também tem a ver com livros, teatro, vanguarda, experimentação, excentricidade, erotismo, humor, política, arte, absurdo, surrealismo, dadaísmo, futurismo e até ciclismo.” A melhor explicação para o nome da Ubu editora, tirado de um personagem de Alfred Jarry, está no site da própria empresa.

“O Jarry está servindo quase como um manifesto para a gente, pois era um artista múltiplo”, explica Florencia Ferrari, ex-diretora editorial da Cosac Naify e uma das sócias da nova casa editorial, juntamente com Elaine Ramos, também da Cosac (onde era diretora de arte), e Gisela Gasparian, ex-executiva de fundos de investimento e neta de Fernando Gasparian, fundador da editora Paz e Terra. Agora em novembro, lançam O Supermacho (leia trecho abaixo), “livro erótico, divertido, irônico, político, tudo ao mesmo tempo”, ela diz, entusiasmada. “O Jarry é totalmente hipster (risos)!” Dentro do espírito da editora, pessoas de diversas áreas e épocas dialogam nessa mesma edição: os posfácios são de Agamben, filósofo político, e de Annie Le Brun, crítica literária; a tradução é de Paulo Leminski, poeta, e as ilustrações de Andrés Sandoval, artista contemporâneo.

“O que a gente pensa mais, desde o começo”, continua Florencia, “é fazer um catálogo muito consistente, em que você entenda a relação entre as coisas, sem divisão de áreas ou entre clássicos e contemporâneos. A ideia é que a gente traga pautas relevantes para o debate, seja com livros que discutam assuntos atuais, seja com livros de referência que mantiveram a importância.”

Esse é o caso de Os Sertões, primeiro lançamento da Ubu e já um sucesso editorial. “Para você conseguir pensar, por exemplo, o que está acontecendo no Brasil, ler Os Sertões continua fazendo sentido. A ideia de repaginar um clássico não é de fazer um invólucro mais legal para um livro que venda, mas propor uma discussão no tempo, que tenha uma perspectiva histórica sobre um momento atual.”

Outro lançamento é o livro infantil de Antonio Prata, Jacaré, Não! “Ele disse que começou a escrever porque ficou curioso com as primeiras vezes que seus filhos deram risada. O livro é uma teorização sobre o riso, o que faz uma criança dar risada. No romance do Jarry, o Agamben discute o riso nessa perspectiva de ser a única coisa que o ser humano pode fazer para superar a ideia de morte. Aí a gente encontrou um texto de um psicólogo americano falando de cada fase da criança, porque cada criança ri de uma coisa diferente. Então você vai meio que amarrando tudo”, conclui Florencia.

Em dezembro sai pela Ubu uma monografia sobre a casa que Paulo Mendes da Rocha fez para a própria família, com fotos do filho Lito e texto de Flavio Motta, além de imagens da construção, desenhos e croquis do premiado arquiteto. “Mais para o ano que vem, a ideia é relançar a coleção inteira de antropologia de uma vez, com livros do Marcel Mauss, do Pierre Clastres, do Eduardo Viveiros de Castro e outros”, adianta a editora, que também é antropóloga. Está nos planos também uma edição dos contos reunidos de Italo Svevo.

Quem entrar no simpático site da Ubu, vai encontrar ainda uma livraria virtual. “É uma curadoria de livros de artes visuais, de diferentes instituições, que você não acha normalmente.” Mas ficção de novos autores não está no escopo da editora, que procura botar os gastos na ponta do lápis: “Nos próximos dois anos a gente vai fazer uns dez lançamentos por ano e só.” A julgar pelos primeiros livros editados, isso é também uma garantia de qualidade.

Supermoderno

Ilustração de Andrés Sandoval para O Supermacho, de Alfred Jarry. Foto: Divulgação / Ubu Editora

Leia trecho inicial de O Supermacho, de Alfred Jarry. Com tradução de Paulo Leminski e ilustrações de Andrés Sandoval, romance será lançado em novembro

“Fazer amor é um ato sem importância, já que se pode repeti-lo indefinidamente.” Todos voltaram os olhos para aquele que proferia semelhante absurdo.

Naquela noite, os convidados de André Marcueil no castelo de Lurance acabaram falando sobre o amor, um assunto que todos concordavam ser o mais bem escolhido, sobretudo porque havia senhoras, e o mais apropriado para evitar, mesmo nesse setembro de 1920, penosas discussões sobre o Caso*.

Lá estavam o célebre químico americano William Elson, viúvo, acompanhado de sua filha Ellen;
o riquíssimo engenheiro, eletricista, construtor de automóveis e aviões Arthur Gough e sua mulher; o general Sider; Saint-Jurieu, o senador, e a baronesa Pusice-Euprépie de Saint-Jurieu; o cardeal Romuald; a atriz Henriette Cyne; o dr. Bathybius e outros.

Tais personalidades diversas e notáveis poderiam ter trazido algum frescor ao lugar-comum sem nenhum esforço para atingir o paradoxo, bastaria que cada uma expressasse seu próprio pensamento; a prática social, porém, logo reduziu os bons propósitos dessas pessoas, bem-pensantes e ilustres, à insignificância polida de uma conversação mundana.

A frase inesperada talvez provocasse o mesmo efeito que aquele, até hoje mal analisado, de uma pedra atirada num charco cheio de rãs – depois de um ligeiro desconforto, um interesse generalizado.
Ela poderia, antes de mais nada, produzir um outro resultado: sorrisos. Mas por infelicidade
quem a pronunciara fora o anfitrião.

O rosto de André Marcueil, bem como seu aforismo, abriu um vazio no salão: não por sua singularidade, mas – se é que estas duas palavras podem vir juntas – por sua insignificância característica: tão pálido quanto o peitilho da camisa, ele teria se confundido com os painéis de madeira das paredes, pouco iluminados e sem
o debrum nanquim da barba que ele portava como um colarinho, e de seus cabelos levemente compridos e ondulados a ferro, sem dúvida para esconder uma calvície incipiente. Os olhos eram provavelmente negros, mas com certeza fracos, pois se abrigavam por trás das lentes fumês de um pincenê de ouro. Marcueil tinha trinta anos e uma estatura média, que ele parecia gostar de diminuir ainda mais ao encurvar os ombros. Os pulsos, finos e tão peludos que lembravam à perfeição seus esguios tornozelos embainhados em seda preta – pulsos
e tornozelos evocando em toda a sua pessoa uma fragilidade notável, pelo menos a julgar por aquilo que se via. Falava baixinho e devagar, como que preocupado em controlar a respiração. Se possuísse uma licença de caça, sem dúvida se leria na descrição física: queixo arredondado, rosto oval, nariz comum, boca comum, compleição comum… Marcueil encarnava tão bem o tipo do homem comum que, na verdade, isso o tornava extraordinário.

A frase se revestia de uma ironia deplorável, sussurrada como um sopro pela boca desse manequim: Marcueil certamente não sabia o que dizia, pois dele nunca se ouvira falar que tivesse amante, e supunha-se que seu estado de saúde lhe proibisse os prazeres do amor. 

Fez-se um silêncio glacial, e alguém se apressou a mudar de assunto quando Marcueil retomou: “Falo sério, senhores”.

“Eu imaginava”, murmurou a nada jovem Pusice-Euprépie de Saint-Jurieu, “que o amor fosse um sentimento.”
“Talvez, senhora”, disse Marcueil. “Basta entrarmos num acordo… sobre… o que se entende… por sentimento.”
“É uma impressão da alma”, apressou-se em dizer o cardeal.
“Li alguma coisa sobre isso nos filósofos espiritualistas na minha infância”, acrescentou
o senador.
“Uma sensação enfraquecida”, disse Bathybius. “Viva os associacionistas ingleses!”
“Minha opinião quase coincide com a do doutor”, disse Marcueil.
“Um ato atenuado, provavelmente, isto é, não bem um ato, ou melhor: um ato em potencial.”
“Admitindo-se essa definição”, disse Saint-Jurieu, “o ato realizado excluiria o amor?”
Henriette Cyne bocejou, ostensivamente.
“Claro que não”, disse Marcueil.

As senhoras julgaram que deveriam se preparar para corar atrás de seus leques, ou para fingir que iam corar.

“Claro que não”, ele concluiu, “se ao ato realizado suceder um outro que resguarde aquilo que… de sentimental
só acontecerá mais tarde.”

Desta vez, muitos não contiveram um sorriso. O anfitrião evidentemente lhes dava toda a liberdade para tanto, divertindo-se com o desenrolar de um paradoxo.

*Referência ao Caso Dreyfus


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