O prezado leitor sabe o que é “Penny Lane”? Sim, é uma canção dos Beatles. Mas pergunto o que é nomeado pelas duas palavras para além disso, e antes disso. Sabe?
É uma ruazinha de um bairro de Liverpool, cidade portuária decadente em que a famosíssima banda inglesa nasceu. Seu nome, fosse ela de uma cidade brasileira antiga, seria “Beco do Tostão”.
A canção desse nome faz uma linda mistura de memória empírica – fotos mostradas por um barbeiro, um carrinho de crianças, um bombeiro olhando ampulheta, uma enfermeira, gente comum, rua de bairro, nada excepcional – com uma declaração de saudade.
A pergunta que armo aqui para depois falar de outro subúrbio é: e por que caminhos nós achamos natural, trivial repetir o canto de saudade dos rapazes de Liverpool? Como? Por que caminhos andou a canção para nos alcançar e ficar para sempre impregnada em nossa mente? E por que outros cantos do mundo não merecem a mesma sorte?
Hora de pedir desculpas pela imensa volta, hora de apresentar outro subúrbio, outro cantor suburbano: prezado leitor, eis aqui um escritor chamado João Simões Lopes Neto, celebrado, no ano de centenário de sua morte, em mostra que segue em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre até 18 de dezembro.
O escritor viveu entre 1865 e 1916, nascido em Pelotas, sul do Rio Grande do Sul, em família rica e tradicional, com adolescência vivida na Corte, o Rio de Janeiro, nos anos 1870, e vida adulta transcorrida em sua cidade natal, metido num sem-número de iniciativas, das mais corriqueiras – escrever poemas e crônicas para jornal, engajar-se em instituições prestigiosas para sua época e classe – às mais improváveis: meter seu dinheiro em roubadas homéricas, como uma suposta mina de prata, criar uma marca de cigarros com o nome de “Diabo”. E ser escritor dedicado ao mundo de sua cidade e região.
A parte mais conhecida de sua obra são os Contos Gauchescos e as Lendas do Sul (1912/1913), que encantaram leitores de grande discernimento, de Mário de Andrade a Guimarães Rosa, e foram reconhecidos por críticos de primeira, como Augusto Meyer e Antonio Candido. Que valor viram nele?
Certo que outros leitores veem na obra, antes, empecilhos fortes, que de fato existem mas são superáveis, como o vocabulário ultraespecífico e, pior, posto a serviço de descrições de um mundo não hegemônico e minoritário na cultura brasileira, a saber, o mundo do pampa, esse bioma que compartilhamos com o Uruguai e a Argentina. Mundo do cavalo, mundo da fazenda e da charqueada, mundo de guerras de fronteira, mundo de luta explícita entre a força humana e a força da natureza.
Mas se trata de uma linguagem orgânica com os enredos, sem artificialismos, nem exotismos. Alguns dos contos frequentam as mais relevantes antologias de conto brasileiro, aqui e no exterior, há décadas, por sua força específica – no enredo, no trabalho de linguagem, e mais que tudo na arquitetura narrativa: Simões Lopes Neto teve a genial intuição de passar a palavra, totalmente, a um testemunho direto, dado por Blau Nunes, velho e sábio peão de quase 90 anos, que repassa sua vida, em lances dramáticos que ora se ligam à história da região (Farrapos, Guerra do Paraguai), ora mergulham naquilo que os antigos gostavam de chamar de natureza humana, as paixões irresistíveis entre mulher e homem, os interditos dos tabus familiares, a fúnebre volúpia da vingança.
Sim, o melhor Simões Lopes Neto é da família dos grandes relatos trágicos, sejam eles escritos em russo como alguns contos de Tolstoi, ou no inglês de Joseph Conrad, para citar dois acima de qualquer suspeita de localismo, não obstante sua profunda ligação com os ambientes em que transcorrem as intrigas.
Há toda uma outra face de sua obra, obscura até para seus conterrâneos, e isso por motivos triviais. Simões Lopes Neto morreu muito cedo, em condições sociais duras tendo em vista sua origem social, tendo deixado muita coisa espalhada em jornais, revistas e manuscritos. Sobre isso, foi um talento dispersivo, que espalhou boas e excelentes ideias em uma miríade de projetos, grande parte falhados, como uma ótima cartilha para alfabetização (a Artinha de Leitura) ou uma ousada coleção de cartões-postais com finalidade pedagógica e impregnados pelo civismo típico da época. Ele não soube nem publicar-se nem zelar por sua obra.
Para dar dois exemplos: uma coleção de histórias jocosas, em parte inspiradas pela obra do Barão de Münchausen, os Casos do Romualdo, só ganhou a forma de livro em 1953, por insistência de um admirador de talento, Carlos Reverbel; duas breves séries de crônicas de tema urbano, focadas nos pobres e nos “subterrâneos” de sua cidade, peças de delicadeza social e força expressiva comparáveis às de João do Rio, só agora, em 2016, estão merecendo livro (Inquéritos em Contraste).
Pelotas não é Liverpool, contos e lendas não são canção, Simões Lopes Neto teve carreira errática e apenas municipal em vida e não pode ser comparado com o sucesso planetário dos Beatles – tudo isso talvez alivie nossa consciência ao considerar o contraste entre “Penny Lane” e Contos Gauchescos. Mas há mais coisa nisso tudo.
Se é certo que o desafortunado mas talentoso escritor pelotense compartilha o destino de muita porcaria localista (que aprendemos a chamar pelo nome equívoco de “regionalista”), também é fato que ele emparelha com grandes realizações artísticas, coisa realmente válida e duradoura tramada sobre uma matéria – rural, provincial, sertaneja, gauchesca, fique à vontade para dar nome – de pouca fortuna em país de tradição política, econômica, administrativa e cultural fortemente centralista, centrípeta, sufocadora da diferença, matéria que, repito, tende a ser menosprezada pelo mero fato de ser como é, ou melhor, pelo mero fato de não combinar com o vezo urbanófilo e novidadeiro, à direita e à esquerda do espectro político.
Cante lá a saudade do Beco do Tostão, e não deixe de prestar atenção a outros lutos, como aquele que se encontra, maduro, na obra de Simões Lopes Neto.
Deixe um comentário