A entrevista com Martinho da Vila estava marcada para o dia seguinte à sua apresentação na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Em dia pós-festa, o horário agendado para o encontro, no apartamento do cantor e compositor, na Barra da Tijuca, às 13h30, poderia ser considerado cedo demais, mas ele manteve o compromisso. De voz mansa, ele, que sorri ao cantar, o faz também ao conversar. No encontro com a reportagem de CULTURA!Brasileiros, Martinho falou sobre De Bem com a Vida, seu primeiro álbum de inéditas em nove anos, também lembrou da carreira militar que largou para se dedicar ao samba, do cargo honorário de embaixador cultural de Angola e contou das aulas, iniciadas no ano passado na Faculdade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, na condição de aluno ouvinte do curso de Relações Internacionais. “José Serra não poderia ser chanceler de jeito nenhum. Deveria fazer como eu, estudar para ter algum conhecimento”, provoca, referindo-se ao tucano, ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temer, pouco antes de a cachorra Cuba entrar aos galopes e interromper a conversa a seguir.
CULTURA!Brasileiros – Como foi se apresentar no encerramento da Olimpíada? Acredita que o País foi bem representado, em especial a cultura negra?
Martinho da Vila – Gostei muito de participar. Tinha planejado ficar fora nesse período de Olimpíada. Eu moro na Barra, onde quase tudo aconteceu, e pensei que isso aqui fosse ficar uma confusão. Então aproveitei para viajar com os guris, levá-los para conhecer Nova York e Miami, mas acabou que não consegui ficar fora durante toda a Olimpíada, porque, primeiro, me chamaram para conduzir a tocha e tive que adiar em alguns dias a ida. Depois, fui convidado a participar do encerramento e tive que encurtar as férias. Foi muito bom, foi um sucesso total. O encerramento foi lindíssimo. A cultura negra esteve presente na abertura e no encerramento através da música.
Você tem forte ligação com a África, sobretudo com Angola. Como teve início essa relação?
Fui para Angola, pela primeira vez, ainda no período colonial (o país tornou-se independente de Portugal em 1975) e voltei muitas vezes. Fui como artista convidado para fazer shows.
Como surgiu o projeto Kalunga?
Angola teve uma longa guerra por independência. Em 1980, as diversões tinham sido praticamente suprimidas e o Ministério da Cultura de lá resolveu fazer uma festa para o povo angolano, o projeto Kalunga, e convidou artistas brasileiros. Foi uma maravilha, até hoje não esquecem. Foi uma delegação incrível, Dorival Caymmi, João Nogueira, Clara Nunes, João do Vale. Fernando Faro reuniu o grupo, também chamou o Chico Buarque e depois a mim e organizamos tudo. Tem uma imagem que não esqueço desse festival: Caymmi. Ele não estava querendo cantar e Faro insistiu, falou para ele subir com o violão e tocar uma musiquinha. Ele aceitou, começou a cantar um pedacinho e todo mundo cantou junto. Foi uma coisa impressionante. O evento foi um marco na relação entre Brasil e Angola. Depois quiseram trazer uma delegação angolana para cá e me encarregaram de fazer isso. Foi aí que nasceu o LP Canto Livre de Angola. Foi emocionante, os shows aconteceram no Rio, na Bahia e em São Paulo.
Você virou uma espécie de embaixador de Angola no Brasil… Logo depois da independência eles não tinham embaixada no Brasil. Quando vinham para cá autoridades angolanas ou representantes comerciais, eles me procuravam para eu abrir portas. O pessoal ficava lá em casa também, parecia uma embaixada (risos). Depois me deram o título honorário de embaixador cultural.
E agora o José Serra ameaça fechar embaixadas na África…
É um absurdo completo o Serra ser chanceler. Ele não tem nada a ver com Relações Internacionais, não tem as características de um chanceler. Ele tinha era que fazer o que estou fazendo: ir para a faculdade estudar um pouco para aprender sobre o assunto.
Você está estudando Relações Internacionais?
Sim, na Estácio, aqui na Barra. Estou no quarto período. A prática das Relações Internacionais eu tenho há muito tempo. Sou embaixador da boa vontade da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Quis entrar para a faculdade para entender mais da teoria. É o que Serra deveria fazer, para adquirir mais conhecimento. O Niemeyer com 90 anos estudava. Eu tenho 78. Na minha sala tem gente de 20 anos. Tudo joia! Eu sinto que eles gostariam que eu fizesse muitas intervenções durante a aula, mas eu não faço. Estou lá também para fazer um estudo sobre a faculdade. Não conhecia o mundo universitário.
É sua primeira faculdade?
É, queria ver como é a sala de aula, os professores. Há um tempo eu fiz um trabalho promocional para a Uniban, de São Paulo, e pensei que precisava entender mais desse meio. Estou lá como observador. Mas é difícil, por outro lado. O professor às vezes fala coisas que eu não concordo totalmente, mas não estou ali para debater com ele. Vou às aulas todos os dias. Tenho que ter presença, fazer os trabalhos coletivos, faço tudo direitinho. Não preciso fazer provas porque sou ouvinte. Primeiro fiz vestibular, aí entrei para a faculdade, mas fiz requerimento, falando da minha situação. Eles estranharam: você está fazendo o que aqui? (risos) Só não quero ter diploma. Não estou atrás disso.
No documentário A Verdadeira História do Samba, Nelson Rufino diz que você é uma figura enraizada no Rio de Janeiro, que vive o cotidiano da sua cidade e que essa ligação fortalece a sua composição. Ele diz que sua música é uma particularização de um comportamento geral do Rio de Janeiro. Você concorda com essa opinião? Qual a importância da Vila Isabel para o seu samba?
Nelson é meu parceiro, um grande cara, um baiano que a gente gosta muito aqui no Rio. Meu parceiro em algumas músicas. Não costumo analisar muito o que represento, só faço e pronto. Não é só com o Rio a minha ligação, mas com o lugar onde eu nasci no interior do estado (Martinho é da cidade fluminense de Duas Barras), gosto de trocar informações, uso a música para isso. A Vila Isabel não tem nenhuma ligação com meu lado artístico. Em 1966, a Vila foi para o primeiro grupo das escolas de samba pela primeira vez. O presidente quis fortalecer a escola de samba e me chamou. Eu estava na escola da Boca do Mato, fui chamado para organizar a ala dos compositores. O primeiro desfile meu foi no ano seguinte, em 1967, quando fiz o samba enredo Carnaval de Ilusões. Foi a primeira vez que as escolas mudaram as cores, até então usavam apenas duas. Hoje acho que até colorem demais. Também foi a primeira vez que um enredo não foi baseado na história do Brasil, mas um enredo inventado, fantasioso. Foi marcante.
Desde 2007, você não lançava uma leva de inéditas. É mais difícil compor hoje?
Não, compor é sempre difícil. Sempre faço discos conceituais, tenho ideias de disco e vou montando. Nesse novo álbum pensei em fazer composições próprias, que é uma coisa que eu não faço há muito tempo. Fiz isso só nos primeiros discos.
O álbum tem parcerias, algumas de fora do meio do samba…
A maioria já era meu parceiro. Caso do João Donato. Jorge Mautner entra como músico. O Criolo eu não conhecia bem. Meu filho, o Preto, que gosta muito dele, falou dele para mim, e sugeriu convidá-lo. Meu filho é assistente de produção do disco, que foi produzido pelo André Midani. Fiz uns sambas falados e o Criolo participa em duas faixas.
Você foi sargento e virou sambista. É verdade que Marcus Pereira foi um dos responsáveis por isso?
É. Eu botei uma música no Festival da Record de 1967. Estava lá sozinho, todo mundo tinha torcida e o Marcus me ajudou, botou mais gente dentro do teatro. Ele era bem de esquerda, comunista, era um publicitário com mais de 40 funcionários, todos almoçavam e jantavam na empresa (a gravadora Discos Marcus Pereira). Ele era um cara muito legal. Falava que eu tinha que dar baixa do Exército. Gravei o primeiro disco, Casa de Bamba, foi um sucesso, mas fiquei em dúvida, porque tinha 13 anos de carreira militar. Tirei uma licença inicial de seis meses, depois pedi outra de dois anos, sem vencimentos. Marcus me incentivou a fazer isso. Mas a vida artística é a mais instável que existe. Eu tinha contato com algumas estrelas que eu admirava muito e todos falavam para mim: não faça isso, isso aqui é uma tristeza. A Elizeth Cardoso morreu com o nome lá em cima, mas já não estava gravando mais. As gravadoras mudam de artistas quando eles chegam a uma certa idade. Acho que sou exceção, porque agora fui contratado pela Sony. Mostrei a ideia de um disco diferente, com violão e cavaquinho, e, como dou sorte, o presidente da Sony é meu fã e falou para fazer o disco do jeito que eu quisesse. No passado, isso não acontecia. Quando dei baixa do Exército, Marcus
falou: “Se você sair e a música não der certo, você é contador, escrevente, pode vir trabalhar na minha empresa”.
Você chegou a trabalhar na gravadora dele?
Trabalhei no projeto do álbum Música do Sudeste. Marcus tinha a ideia de mapear a música do Brasil. Queria também fazer um balé folclórico brasileiro, como existe na Rússia, em Cuba. Ele conseguiu um grande financiamento público, o projeto era caro, e contratou muita gente, depois tomou uma rasteira e o dinheiro não saiu. Ele ficou indignado. Suicidou-se. Uma coisa triste.
Por que você foi ser sargento? Não é curioso saber que Nelson Cavaquinho foi da Polícia Militar, Candeia também, se não me engano?
E tem o Nelson Sargento também. Ser militar é uma profissão como qualquer outra, um funcionário público. Quando fui para o Exército, tinha terminado um curso de auxiliar de indústria química no Senai. Fui trabalhar no laboratório do Exército e decidi ser militar.
Como era ser sargento durante a ditadura militar?
Foi difícil porque os sargentos eram janguistas. O João Goulart, inclusive, criou o clube de tenentes e sargentos, facilitou para que fosse fundado. Ele até foi inaugurar o clube. Em 1964, os sargentos eram muito mal vistos pela cúpula do Exército. Foi muito difícil para todo mundo. Em 1965, fui fazer um curso para me formar contador do Exército e tinha sargento de todas as partes do Brasil para a prova.
Depois você passou para o outro lado, virou artista censurado…
Todo mundo teve composição censurada. Acho que não teve um criador sem música censurada.
O País agora vive outro período difícil, Dilma tem grandes chances de sofrer impeachment nos próximos dias (previsão confirmada em 31 de agosto). Qual a sua opinião sobre esse impeachment?
É um absurdo total o que está acontecendo no Brasil, um absurdo mundial. Todos estão estarrecidos. A democracia está sendo questionada. O próprio Michel Temer não poderia ser candidato porque foi processado. É um absurdo. As pessoas têm apego ao poder, porque ele encanta. É muito difícil alguém abrir mão e aceitar que já fez sua parte. Só quem fez isso foi Nelson Mandela, que poderia ser presidente perpétuo da África do Sul, até a morte. Ele cumpriu seu mandato, promoveu eleições e pronto. Veja o caso do Lula: ele devia ter falado: “Não vou mais me candidatar à Presidência”. Se ele dissesse isso, não estaria nem sendo investigado. Estão arranjando formas de processar o Lula de qualquer forma.
Você é filiado ao PCdoB. Já teve alguma participação na política partidária? Por que se filiou?
Não, nunca tive. Me filiei ao partido com a intenção de incentivar outros brasileiros a fazer o mesmo. Acho que todo mundo deveria se filiar a um partido. É uma forma de participação. Se você entrar para um partido, pode opinar, ter a chance de mudar as coisas. Minha intenção foi essa. Quando eu me inscrevi, eles pensavam que eu queria ser candidato. Eu falei: não é nada disso. Faz mais de dez anos que eu me filiei.
Voltando à musica, você acredita que ainda é possível haver renovação do samba?
O samba está aí firme e forte. A renovação vem naturalmente. Tem uma série de bons novos sambistas: Dudu Nobre, Diogo Nogueira, Moises Marques, Ana Costa, Roberta Sá, Martnália, tem muitos. Os festivais de música incentivaram muitos nomes da minha época. Muitos dos grandes astros são filhos de festivais como eu. Os festivais foram importantes nesse sentido. Infelizmente, hoje não existem movimentos que façam o mesmo.
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