Uma cutucada no sistema

À esquerda, a instalação Da Alegria Planetária, de Lygia Nobre e Coletivo UAP, com a frase Ouse Antes de Usar. À direita, o arquiteto Héctor Zigliecca trabalha a frase de Milton Santos “O centro está em todo lugar”. Foto: Everton Ballardin
À esquerda, a instalação Da Alegria Planetária, de Lygia Nobre e Coletivo UAP, com a frase “Ouse antes de usar”. À direita, o arquiteto Héctor Zigliecca trabalha a frase de Milton Santos “O centro está em todo lugar”. Foto: Everton Ballardin

Multidisciplinar, partidário, escrachado, político, provocador, careta. De qualquer plataforma que se analise o projeto Cartas ao Prefeito, que tomou a galeria Pivô por mais de um mês, somos obrigados a fazer reflexões que nos lançam em um efervescente caldeirão de perguntas com respostas rarefeitas. Emoldurada pelo cenário político sombrio em que a cidade de São Paulo se vê mergulhada às vésperas das eleições, a exposição Cartas ao Prefeito e o seminário Cartas Abertas demarcam o limite entre as forças de movimentos político-sociais e urbanísticos antagônicos e as reflexões sobre
qual é o papel da cidade. Uma série de debates deu densidade ao projeto, com a participação de alguns protagonistas que estruturaram um pensamento crítico e propositivo para a cidade.

Depois de Nova York, Taipei, Cidade do México, Atenas e Buenos Aires, entre outras capitais, Cartas ao Prefeito chegou a São Paulo com a curadoria de dois jovens arquitetos: Bruno de Almeida e Fernando Falcon. O formato se repete em cada país, com 50 cartas de arquitetos direcionadas ao prefeito. No Brasil, os curadores saíram do padrão original e criaram o seminário Cartas Abertas, que se estendeu pelo mês de agosto. Falcon diz que a ideia foi resgatar o desejo como força transformadora da restauração da cidade. “A mobilidade está ruim, mas finge-se que está bem. Há coisas boas em São Paulo, mas se pensarmos que a cidade segrega metade da população, não dá”. Almeida lembra que as cartas não começam nem terminam no momento de sua escrita, elas representam “um vetor no espaço em direção ao futuro”. Entre elas está a de José de Anchieta, escrita em 1555, para Ignacio de Loyola, considerada a certidão de nascimento da capital, em que narra o cotidiano da recém-vila fundada, a Vila de São Paulo.

Desde o projeto Arte Cidade, idealizado por Nelson Brissac, em 1994, São Paulo não vivia outro debate como este. Os curadores partiram do princípio de que “escrever uma carta é submeter a mensagem a um percurso pela cidade. Ao chegar ao seu destino final, a carta carrega outra dimensão que está para além da mensagem original”. As cidades sempre foram fetiche no imaginário de escritores. Voltaire, por exemplo, critica a França, Paris, os governantes e a religião em uma das 20 mil cartas que escreveu, e imagina um país fictício, O Eldorado, onde não haveria maldades, padres nem dinheiro, e sim paz, liberdade e solidariedade. As metrópoles também seduziram poetas, diretores de cinema e artistas plásticos, como Baudelaire, Fellini, Rosselini, Woody Allen, Richard Serra, Christo e tantos outros.

Nascido como projeto itinerante, Cartas ao Prefeito é iniciativa do Storefront for Art and Architecture, fundado em 1982 por Kyong Park, em Nova York. A instituição envolve-se com questões sociais e políticas como os sem teto, a Guerra do Golfo, o embate Israel-Palestina e o Occupy Wall Street.

Entre as 50 cartas do projeto, algumas são escritas ao prefeito Fernando Haddad, outras a governantes anteriores e poucas ao futuro mandatário. Cada uma aponta para múltiplas direções, com sugestões, críticas e programas de contato com o mundo, além de desejos reais e utópicos. A maioria não imita o real, mas multiplica dúvidas colocando em pauta, entre outros assuntos, habitação, mobilização, projeto habitacional, plano diretor, educação, saúde e a função do prefeito na cidade.

O arquiteto, crítico de arte e professor da FAU Agnaldo Farias recebeu positivamente o projeto Cartas ao Prefeito por conter perguntas e propostas que o governante não está acostumado a ouvir. “É um modo de se pensar a cidade; a ordem urbana não contempla certas questões colocadas pelos artistas e arquitetos, muitas delas imaginativas, irônicas, e todas elas dando o que pensar.” Farias fala desse projeto como um arejamento dentro de uma ordem que se restringe a aspectos meramente funcionais e econômicos da cidade. “Os arquitetos estão alertando para outras questões que não foram adotadas, mas que valeria a pena serem levadas em consideração pelo que elas têm de utópicas, por serem fora do comum.”

O arquiteto, professor e crítico Guilherme Wisnik, de quem talvez se esperasse um texto sério e analítico, escreveu uma carta em tom de brincadeira, carregada de ironia e humor. “Achei que não era o caso de levar a sério a proposta, porque a gente não sabe com que prefeito está falando.” A carta de Wisnik é um sequência visual que mistura o monstro do desenho japonês Spectreman, de 1972, seriado televisivo que embalou a sua infância, e o texto Projeto e Destino, de Giulio Carlo Argan, de 1964. “Os arquitetos têm a tendência de levar tudo muito a sério, quis quebrar isso.” Em sua carta, diz que São Paulo se encontra hoje em desvantagem na sua luta contra a opressão especulativa, a segregação e a desigualdade social, as múltiplas formas de particularismos e de intolerância, de paroquialismo mental, de manobras midiáticas, de regressão moral, de infiltração insidiosa da religião na política. “São Paulo encontra-se em desvantagem, enfim, contra os golpes cegos do ódio, a inércia do hábito, do costume e dos privilégios adquiridos, isto é, contra todas as formas de apequenamento do espírito. Mas quem poderá intervir?”

Bem-humorado, Guilherme Wisnik mistura o monstro do televisivo japonês "Spectreman", de 1972, série da qual era fã na infância, com o texto "Projeto e Destino", de Giulio Carlo Argan, de 1964
Bem-humorado, Guilherme Wisnik mistura o monstro do televisivo japonês “Spectreman”, de 1972, série da qual era fã na infância, com o texto “Projeto e Destino”, de Giulio Carlo Argan, de 1964

Gabriel Kogan não responde diretamente a Wisnik, mas em um trecho de sua carta escreve: “Arriscaria dizer: retomar a radicalidade na política é, ao mesmo tempo, retomar a criatividade e o vigor de intervir nas cidades”. Em outro momento diz que se sua carta tivesse título, seria A Ilusão da Esquerda no Poder. O tom é de melancolia: “A esquerda pensou ter chegado ao poder em nossas terras sem que isso tivesse acontecido”. O que temos é uma dissimulação de políticas como sendo de esquerda a encobrir suas essências conservadoras. Esta é a principal ilusão. Minha melancolia poderia quem sabe ser traduzido como decepção sobre uma prefeitura incapaz de pensar criticamente e projetar, seja de um ponto de vista humanístico, seja revolucionário, as principais questões da cidade, promover mudanças estruturais nessas áreas; integrar em um plano de governo as intervenções territoriais e conferir-lhes um sentido ético. A esquerda não está no poder.”

Já Sérgio Ferro, o mais radical entre os arquitetos, em carta para os curadores, e não para o prefeito, escreveu: “Há 46 anos não voto. Na Oban (Operação Bandeirante, centro de combate à subversão na ditadura civil-militar, criado em 1969), rasgaram meu título de eleitor dizendo: ‘Você nunca mais vai precisar dele’. Mas mesmo antes disso eu já anulava meus votos. Na última vez (1970), para provocar, votei em Lamarca, meu maravilhoso amigo… Na verdade, só acredito em sistema representativo como o que foi ensaiado por um curtíssimo tempo, durante a segunda parte da Comuna de Paris, no século XIX: eleição de baixo para cima de representantes indicados pelo povo, revogáveis a qualquer momento se não respeitassem seus mandatos, por períodos não renováveis e com salários iguais aos dos operários. E em regime de revolução permanente. Ou seja, nos tempos que correm, pura utopia. Mas, mesmo assim, se meu radicalismo descorasse um pouco, eu pediria ao sr. prefeito a ser ‘eleito’ que continuasse a sustentar, como fez a Erundina apoiada pela Ermínia Maricato e pelo Nabil Bonduki, as extraordinárias experiências dos canteiros de mutirantes autogeridos, vinculados aos movimentos dos trabalhadores ‘sem terra’ e ‘sem teto’.”

Firme e questionadora, a carta da arquiteta Lizete Maria Rubano fala da potência do Estatuto da Cidade como instrumental de enfrentamento da propriedade da terra e da condição fundamental colocada pela Constituição Brasileira. “Habitar a cidade, botar menino na creche, ir a pé para o trabalho e ver a festa de rua preparada para o fim de semana é direito de toda pessoa. Morar na Cidade Tiradentes não é o mesmo que morar na área central. A Cidade Tiradentes é ausência de opção, irresponsabilidade do Estado, condenação dos jovens a uma vida urbana que precisa ser inventada por eles porque ela não existe ali.”

Com formação em arquitetura, o artista plástico Carlito Carvalhosa também escreve sobre os descasos da cidade. “Em São Paulo se faz questão de abandonar o que existe por alguma ideia de cidade ideal imposta de forma autoritária. Parece que o problema de uma cidade como São Paulo não é falta, mas excesso de planejamento – um planejamento delirante, desligado da história e da realidade, que não respeita
a cidade, transformando-a em um lugar cego, onde nada se vê.”
A artista e pesquisadora Giselle Beiguelman se juntou ao projeto com o trabalho ZAP ZAP PRO PREFEITO, em que disponibiliza o número de Whatsapp (11. 950469521) para que as pessoas enviem mensagens em qualquer formato de mídia – áudio, foto, vídeo e texto, para o futuro prefeito de São Paulo.

Em Papel de Parede, Lucas Simões cria um ambiente forrado por fotos recortadas de campanha publicitária eleitoral. Foto: Everton Ballardin
Em Papel de Parede, Lucas Simões cria um ambiente forrado por fotos recortadas de campanha publicitária eleitoral. Foto: Everton Ballardin

As obras que compõem a coletiva Cartas ao Prefeito são diversificadas, mas têm a competência como matriz. O conjunto de postais logo na entrada da exposição, de autoria do escritório VÃO, é singular. Suas cartas escritas sobre esses postais, endereçadas a antigos prefeitos da cidade, são um retrato do crescimento da mancha urbana de São Paulo, medida a partir da malha ferroviária entre a Sé e o bairro de Parelheiros. Com resultado pop, a instalação Papel de Parede, de Lucas Simões, é um patchwork de imagens recortadas, emblemático da pluralidade das campanhas publicitárias para prefeito de São Paulo, de Fernando Haddad a candidatos de anos anteriores. Nesta época de fim das utopias, o arquiteto Héctor Zigliecca trabalha a frase de Milton Santos, O centro está em todo lugar. Já a instalação Da Alegria Planetária é a carta ao prefeito de Lygia Nobre, com o Coletivo UAP, em que a frase Ouse Antes de Usar, transformada em pôster, parece criticar o mundo clichê contemporâneo. Envoltos em um grafismo, Marcos Rosa e Julia Mazagão trabalham uma série de perguntas como: O que você vê? Como você faz? O que você planeja? Todas sobrepostas a um texto de Bruno Latour.

A arte é tributária de uma evolução de rupturas históricas, que podem ser provocadas por um evento. As obras expostas nos levam a tomar distância entre o que vemos e que está oculto, enquanto as cartas dirigidas ao mandatário carregam frustrações e desejos dos arquitetos em relação às ações executadas e as que gostariam de ver implantadas. Em ambas as frentes, Cartas ao Prefeito resultou num projeto denso. Espera-se que ele possa circular entre o máximo de pessoas ao se transformar em livro, como está previsto pelos curadores.


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