Eis que, ao fim do dia, as criaturas enlameadas ressurgem. Retornam do sítio arqueológico, esgotadas, como vítimas de uma avalanche de terra. Sob o calor amazônico e o ataque de mosquitos, formigas e eventuais cobras, o grupo de arqueólogos escava horas a fio em busca de lascas de cerâmica, carvão e ossos que ajudem a recontar a história de uma civilização.
Para Eduardo Neves, a profissão é um ato de fé. A partir de pequenas e frágeis amostragens, um dos maiores especialistas em arqueologia da Amazônia imagina a floresta na chegada dos europeus, povoada por cerca de oito milhões de indígenas. Populações de caçadores e coletores, capazes de residir de forma sedentária sem precisar recorrer à agricultura – uma hipótese que desafia a literatura arqueológica produzida até hoje, que sempre associou o cultivo da terra à permanência de um povo em um só lugar.
“É a ciência no limite. Tem muito arqueólogo que se incomoda com isso e entra em crise. Mas a história é assim. A gente trabalha com hipóteses, nós não provamos nada conclusivamente. Ainda mais em lugares como o Brasil, onde muitas populações não tinham a escrita. Tudo que a gente pode saber sobre elas vem das coisas que estão depositadas na terra, restos de plantas, animais, amostras de solo, que coletamos.” A tese que Neves e sua equipe defendem é a de que, ao contrário do que sempre se pensou, a Amazônia não era uma floresta virgem, intacta e pouco povoada até os europeus chegarem. Os índios já provocavam impactos e modificavam a paisagem muito antes de o País ser colonizado.
Demonstrar isso é o objetivo da expedição no sítio arqueológico da Vila de Teotônio, a 40 quilômetros de Porto Velho, em Rondônia – o último trabalho de campo antes de ir para a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde Neves dará aula durante um ano. Professor titular de Arqueologia Brasileira e membro do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, ele é um dos principais responsáveis por colocar a Amazônia no mapa da arqueologia mundial. “Acreditamos nisso, agora precisamos provar para o mundo. Tem muito pesquisador que não só discorda, mas acha perigoso que defendamos a tese de que a Amazônia já sofria modificações, como se estivéssemos dando uma chancela para que os atuais impactos na floresta continuem acontecendo”, diz.
Durante um mês de trabalho de campo, em fevereiro último, o grupo ficou acampado na parte externa de um restaurante. Neves prefere dormir em rede, mas a quantidade de mosquitos durante a noite o obrigou a ficar em uma barraca. Outros dois arqueólogos também foram surpreendidos pela voracidade dos insetos e tiveram que dividir em três uma única barraca. Além dos mosquitos, as formigas são outro tormento. Em especial a tucandeira, espécie comum na região, cuja picada provoca dores por 24 horas, febres altas e alucinações.
Nada disso incomoda Neves, pelo contrário. Ele costuma fazer duas expedições por ano. “Isso aqui não é ralação, já fiquei em lugares piores. Mas adoro. Ir a campo é a menor, mas a melhor parte do trabalho.” Em julho, ele deve ir para uma expedição em Guaporé, reserva biológica em Rondônia, na fronteira com a Bolívia, onde se hospedará numa fazenda de controle sanitário, do governo do estado. A 240 quilômetros de Costa Marques, a cidade mais próxima, ele terá de seguir de barco até o sítio arqueológico diariamente. “É um lugar maravilhoso, o mais natural que já fui. Bem isolado, é uma área alagada, com muito bicho”, diz. Para cada duas semanas no trabalho de campo, a equipe pode ficar um ano no laboratório fazendo exames. “Se você quer ser arqueólogo, tem de gostar de se meter em roubada. Tem de ter essa predisposição, ir atrás das coisas. É muito comum arqueólogo, ao ir ficando mais velho, ter casa, filho, não querer mais ficar longe da família. É difícil ficar sem contato com filho pequeno. Aí vai se afastando do campo.”
Na expedição no sítio arqueológico da Vila de Teotônio, excepcionalmente, a equipe de arqueólogos se juntou a um grupo de biólogos, zoólogos, geneticistas, entomólogos (cientistas de insetos) e pedólogos (cientistas de solo), que vieram de vários países para decifrar o enigma de certa minhoca. O animal não é capaz de percorrer longas distâncias, mas uma espécie, original das Guianas, foi encontrada naquele pedaço de Rondônia. Para os especialistas em minhocas, isso levanta a tese de que os animais tenham sido levados por meio da atividade humana – o que indica um deslocamento de indígenas de uma região a outra no período pré-colonial.
MARCAS
Dos 30 anos de profissão, Neves guarda uma grande cicatriz na panturrilha. Em 2000, tomou uma picada de cobra – imagina que tenha sido de uma jararaca – em um matagal às margens do rio Purus, que atravessa o Acre e o Amazonas. Acompanhado de apenas outro arqueólogo, estava em um lugar de difícil acesso, aonde só se chega de barco. Após a picada, tentaram voltar imediatamente, mas o motor do barco não funcionou. Sem remos a bordo, precisaram movimentar a embarcação com as pás da escavação. Conseguiram chegar à Canutama, a cidade mais próxima, mas não havia soro no posto de saúde. A essa altura, Neves expelia sangue pela boca e pelos olhos. Só sobreviveu porque passou por lá um piloto de helicóptero da Petrobras e o transportou a um hospital em Lábrea, no Amazonas, onde recebeu atendimento médico.
Neves leva outras marcas da profissão: uma tatuagem em cada ombro. A mais recente é o desenho da tampa de uma urna funerária marajoara, feita em 2004. A outra é de dez anos antes, quando trabalhava no alto do rio Negro, local de pesquisa para o doutorado, onde viveu com os índios tucano. Um dia viu uma gravura cheia de desenhos em uma pedra e a copiou no caderno de campo. “Voltei para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, a 900 quilômetros de Manaus, no meio da puta que pariu. Uma noite, eu já tinha tomado umas, tinha um cara fazendo tatuagem, meio hippie, ouvindo Raul Seixas. Falei: ‘Vou fazer a tatuagem’. Foi uma loucura, não foi esterilizada nem nada. Mas tive três filhos depois disso, não morri, acho que está tudo bem”, conta dando risada.
Aos pés do camping improvisado na Vila de Teotônio corre o rio Madeira, o terceiro mais extenso do Brasil. Até 2010, havia ali uma cachoeira de sete metros de altura, conhecida pelas águas vorazes, com abundância de peixe. Por causa da farta pesca, os arredores da cachoeira sempre foram povoados ao longo da história. Isso faz do sítio um local privilegiado para arqueólogos, um dos poucos do Brasil onde é possível rastrear uma habitação contínua por três mil anos. O artefato mais antigo encontrado ali data de 6.500 anos atrás.
A construção das barragens de Santo Antônio e Girau, no entanto, alagou o local e deixou a cachoeira debaixo d’água, praticamente extinguindo a atividade da pesca e a economia. Nativos contam que a força da correnteza foi capaz de engolir árvores inteiras. Não era incomum pescadores que se arriscavam a capturar peixes sobre a cachoeira caírem na água – para nunca mais serem encontrados. Nessas horas, quem estava perto da vítima não tinha alternativa a não ser lançar o arpão para tentar iscar o corpo – muitas vezes acabava sendo arrastado também. Ainda hoje, quem quiser se refrescar no rio precisa ter cuidado. Há piranhas e peixes candirus, que podem entrar pela uretra de banhistas e se instalar nos órgãos genitais.
O principal material de pesquisa de Neves é a chamada “terra preta de índio”, um solo que mantém a alta fertilidade e é resultado de anos de intensa ocupação humana. Essa terra é o melhor marcador arqueológico do surgimento de modos de vida sedentários na Amazônia por conter milhares de fragmentos cerâmicos, material usado na prática da agricultura. No sítio de Teotônio, no entanto, foi encontrado algo único: a terra preta sem cerâmica. Isso indica que, na contramão do que diz a literatura arqueológica, o sedentarismo de um povo não está necessariamente ligado à prática da agricultura. Mais do que isso, significa que concepções da arqueologia, ciência concebida na França e na Inglaterra no século 19, não podem simplesmente ser importadas e aplicadas à realidade de países tropicais.
“Essa perspectiva evolucionista na arqueologia, segundo a qual toda a humanidade passou pelas mesmas fases, é muito mais ideológica e política do que embasada em evidências históricas. O que a gente quer mostrar aqui é que existem outros arranjos históricos, outras narrativas que podem ser construídas a partir de contextos sociais, políticos, geográficos e ambientais diferentes. A Amazônia nesse sentido é um lugar privilegiado para fazer esse tipo de crítica e propor outras concepções sobre o passado”, diz o arqueólogo.
NORTE
Neves passou a infância na Granja Viana, em Cotia, São Paulo, numa época em que o bairro era praticamente uma área rural. Sem telefone em casa, com festa de Folia de Reis e muito mato. Quando criança, ele queria ser explorador e viajar para lugares inóspitos. Sempre gostou muito de história também. Então, quando descobriu a arqueologia combinaram-se as duas coisas. O pai, comerciante, e a mãe, dona de casa, não levaram a ideia a sério. Queriam que o filho fosse advogado, e por isso Neves estudou Direito por um ano. Seu avô materno, com quem viveu durante o último ano do colegial, era o único que o incentivava a seguir na arqueologia.
Fez História na Universidade de São Paulo já pensando nisso. Aos 18 anos, pegou um ônibus para Belém nas férias – a primeira vez em que viajou ao Norte do Brasil – e decidiu então que pesquisaria a região. Neves e alguns poucos de sua geração foram os primeiros a estudar a arqueologia da Amazônia a partir desta nova perspectiva.
Com a característica expressão de empolgação, ele conta que descobriu o que seria sua futura área de atuação ao ler a tese de doutorado do arqueólogo José Brochado. Na época, Neves fazia doutorado em Indiana, Estados Unidos, e Brochado, que também estava no país, havia defendido seu trabalho de pesquisa em Illinois. “Quem falou de abordar a arqueologia como uma questão indígena pela primeira vez de maneira clara foi ele. Ninguém tinha lido a tese dele ainda. A biblioteca da minha universidade não tinha, então pedi um empréstimo entre bibliotecas e consegui. Lembro que comecei a ler aquilo e foi uma sensação intelectual que tive poucas vezes na vida, de sentir a terra tremer. Pela primeira vez, eu lia um arqueólogo que dava um sentido histórico para aquilo que a gente estudava no Brasil.”
Atualmente, Neves escreve um livro chamado Por que não há Pirâmides no Brasil, uma questão que não raro ele é obrigado a explicar. A introdução do texto, inclusive, é um diálogo fictício. Neves está na festa do filho pequeno, num salão de festas do prédio, a cerveja está morna e os convidados, pais das outras crianças, são semidesconhecidos. “Começa aquele papo de paulistano: ‘O que você faz?’. Aí digo que sou arqueólogo. O cara responde que sonhava em ser arqueólogo quando criança e eu respondo: ‘O meu sonho era ser dentista ou advogado, mas aí pensei na grana e resolvi fazer arqueologia’. A segunda pergunta é sempre essa das pirâmides.”
Uma população indígena chegou à América há 15 ou 20 mil anos. Por que descendentes construíram pirâmides e fundaram impérios em alguns lugares, como o México, e viviam sem Estado em outros, como o Brasil? Quais os motivos que levam a modos de vida tão diferentes a partir de uma origem genética comum? “Os brasileiros olham para isso e pensam: ‘Ah, isso sempre foi uma bosta, nem pirâmide a gente teve’”, diz. Para Neves, a resposta é a abundância de recursos. “O Estado e a pirâmide são anomalias sociais e crescem em locais onde você tem mais escassez. Onde tem fartura não dá para controlar as pessoas. Não dá para ter Estado, as pessoas são muito mais livres, tem muita comida, muito recurso, como que você vai convencer um cara a trabalhar?”
O surto desenvolvimentista pelo qual o Brasil passa, com obras de grande porte sendo empreendidas, promoveu um boom de trabalho para os arqueólogos. Pela legislação ambiental do País, uma obra de impacto só pode ser realizada se uma equipe de arqueólogos garantir que não há risco de destruir vestígios históricos. Durante anos, foi esse o trabalho de Neves, como consultor da Petrobras. Foi, inclusive, da equipe que atuou no primeiro projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em 1986.
Bastante crítico dos impactos sociais e ambientais de muitos dos empreendimentos energéticos sendo construídos no País, Neves largou a consultoria e voltou para a pesquisa acadêmica. “Não tenho a menor ilusão de que a arqueologia vai salvar o mundo. Mas está na cara que não está certo esse olhar separando natureza de cultura, com essa ideia de progresso como um caminho inexorável em direção ao futuro, de que a história é uma máquina andando para a frente e que tenho de viver de forma diferente do que viveram meu pai e meu avô. As populações indígenas sempre disseram isso.”
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