Kureishi defende  o multiculturalismo, mas rejeita a influência de Salman Rushdie. Considera que seus livros são cômicos, com alguns momentos de tristeza. E se vê mais na linha de autores ingleses como Kingsley Amis, Angus Wilson e PG Wodehouse. Foto: Kier Kureishi
Kureishi defende o multiculturalismo, mas rejeita a influência de Salman Rushdie. Considera que seus livros são cômicos, com alguns momentos de tristeza. E se vê mais na linha de autores ingleses como Kingsley Amis, Angus Wilson e PG Wodehouse. Foto: Kier Kureishi

Hanif Kureishi é um desses escritores que trafegam com naturalidade e talento entre o mundo pop e a chamada alta cultura e por isso atingem um grande público. Foi o que o levou à Flip, em 2012. Também é bastante conhecido por tratar de temas polêmicos, muitas vezes antes de todo mundo. Foi assim, por exemplo, com o romance Álbum Negro, de 1995, e com o conto My Son, The Fanatic,de 1994, que virou filme. As duas histórias tratam do fundamentalismo islâmico de forma crítica e irônica. O assunto, hoje explosivo, era ainda uma curiosidade pouco discutida, a não ser pela fatwa lançada contra Salman Rushdie. Sexualidade, drogas e racismo são outros temas frequentes em sua obra, que se estende também ao teatro. No roteiro de Minha Adorável Lavanderia, de 1985, que lhe valeu indicação para o Oscar e o tornou conhecido no planeta, criou uma história de amor gay entre um punk (interpretado por Daniel Day-Lewis) e um jovem empresário, filho de paquistaneses, com as consequências imagináveis no contexto da Londres conservadora dos anos Thatcher.

Ele mesmo filho de pai indiano (paquistanês a partir de 1947, quando os países se dividiram) e mãe inglesa sofreu bastante com o bullying racista na infância e adolescência. Seu pai, um escritor frustrado que tentava compor romances na calada da noite, na mesa da cozinha, foi perseguido na rua várias vezes, a caminho de casa. Mas essa mesma rua, com seus perigos e sinistras possibilidades, atraía o jovem Hanif, que cresceu em meio a punks, traficantes, prostitutas e DJs. Alguns de seus amigos de Bromley, bairro no subúrbio de Londres onde moravam, ficaram famosos pela música, como Siouxsie Sioux e o baterista do Clash, Topper Headon. Ele preferiu o caminho mais difícil das letras, mesmo com o exemplo desanimador do pai.

Ainda adolescente, começou escrevendo ficção pornográfica, sob o pseudônimo Antonia French. Aos 18 (ele tem 61), já fazia parte da turma do prestigiado teatro Royal Court, ao lado de dramaturgos politizados, como David Hare e Christopher Hampton. O Buda do Subúrbio, de 1990, seu livro mais famoso e elogiado até hoje, surgiu depois do sucesso de Minha Adorável Lavanderia, que lhe deu tranquilidade financeira para escrever com calma. Ganhou, inclusive, uma adaptação, que ele mesmo escreveu, para a TV britânica, em quatro capítulos, com trilha de David Bowie, outro famoso morador de Bromley. Inspirado na própria família, lhe deu muita dor de cabeça, além do estabelecimento definitivo da fama. Foi acusado publicamente pela irmã de explorar a dignidade dos pais e avós. Algo pior aconteceria anos mais tarde, quando lançou, em 1998, Intimidade, novela em que narra a separação de um casal de forma bem franca e por vezes cruel. Os paralelos com sua própria vida eram muito evidentes para que a polêmica não se estabelecesse.

Com A Última Palavra, seu romance mais recente, uma discussão parecida volta a acontecer. Um dos personagens centrais, o escritor Mamoon Azam, tem traços biográficos e de personalidade extremamente semelhantes aos do Nobel de literatura VS Naipaul, autor dos clássicos Uma Casa para o Sr. Biswas e Uma Curva no Rio. Ambos são mulherengos, irascíveis, vaidosos, violentos e arrogantes. Ambos dão permissão para que um jovem ambicioso escreva suas biografias quando já velhos e o convidam para passar um tempo em sua casa de campo. Ambos tiveram uma amante americana que os acusa por abusos físicos e humilhações. Ambos são também “acusados” de esquecer as raízes e adotar o estilo de vida dos colonizadores (Naipaul nasceu em Trinidad e Tobago mas sua família é indiana. Vive na Inglaterra desde jovem, se formou em Oxford e ganhou o título de Sir). Ambos, por fim, escreveram longos perfis de ditadores sanguinários.

O livro, no entanto, não vive só de fofocas. É, como o próprio autor diz, um estudo sobre a arte de escrever, a delicada natureza da biografia e a sempre conturbada relação entre homens e mulheres. E está cheio de citações e frases espirituosas, ao melhor estilo cômico e inteligente de Kureishi, certa vez chamado, pelo The  New York Times, de “um Philip Roth pós-colonial”. Naquela que talvez seja a melhor delas, e que se aplica tanto a Mamoon quanto a Naipaul, Roth e mesmo Kureishi, o narrador pondera: “Um escritor é amado por desconhecidos e odiado pelos familiares”.

Depois de separar-se da mulher, com quem tem gêmeos, Kureishi escreveu esta novela dolorosa, em que expõe, cruamente,  a separação de um casal. Como os personagens eram muito parecidos com ele mesmo e a mulher, o livro causou  certo escândalo na Inglaterra. Foto: Reprodução
Depois de separar-se da mulher, com quem tem gêmeos, Kureishi escreveu esta novela dolorosa, em que expõe, cruamente, a separação de um casal. Como os personagens eram muito parecidos com ele mesmo e a mulher, o livro causou
certo escândalo na Inglaterra. Foto: Reprodução

Brasileiros – A pergunta é inevitável: afinal, Mamoon foi de fato inspirado em Naipaul?
Hanif Kureishi – As pessoas têm comentado isso. Mas assim que comecei a escrever, minha imaginação tomou essa direção e eu fiquei fascinado com a ideia de uma comédia que se passasse no campo onde mora um velho escritor indiano. E fiquei fascinado em imaginar como seria quando esse jovem biógrafo entrasse em sua vida. O livro, no fundo, é sobre escrever. E sobre as relações amorosas entre homens e mulheres.

Já que você falou em comédia, queria que comentasse o papel do humor em seus livros.
Eu escrevo o mais próximo possível do meu inconsciente e tento ter prazer nesse processo. O humor é parte da minha voz, é o meu modo de ver e de entender o mundo. E vejo o romance como uma forma de entretenimento, na melhor acepção da palavra.

Considerando as polêmicas que causaram, existe alguma relação entre Intimidade e A Última Palavra?
Ambos trazem a minha voz, mas foram escritos em épocas muito diferentes. Intimidade é de meados dos anos 1990. São livros de sensibilidades diferentes. A Última Palavra é provavelmente mais leve e divertido. Nunca reli Intimidade, mas as pessoas dizem que é um livro doloroso.

Há um momento em A Última Palavra no qual Mamoon comenta que o romance é um gênero morto.
Acho que o romance não está mais no centro da cultura por algum tempo já. No século XX, a forma central de cultura, que todos comentam e se envolvem, foi o cinema. Agora acho que a forma central de cultura é a TV. Todos falam de Sopranos, The Wire, House of Cards, etc. O romance se tornou uma forma minoritária de arte. Mesmo assim, há muitos romancistas excelentes em atividade, como Michel Houllebecq, Zadie Smith, Jonathan Franzen ou Knausgaard. Ou seja, o romance continua a ser importante, mas não popular. Mas acho que sempre vai existir, na medida em que continuarem a ler e escrever.

Se bem que nunca houve tantos festivais literários por aí.
É verdade. Acho que festivais como os de Paraty, Hay-on-Wye, Jaipur e o de Cartagena fizeram muito para popularizar a literatura. Outra coisa importante que ajudou a tornar a literatura relevante de novo foi a fatwa contra Salman Rushdie em 1989, o que fez as pessoas realmente pensarem sobre liberdade de expressão, o papel do escritor, a relação entre religião e literatura, entre política e literatura. Há muitas razões para que a literatura continue bem viva.

O que é literatura para você?
Diria que é uma ligação profunda e muito necessária entre pessoas. Eu estava lendo recentemente um livro do Knausgaard, o escritor norueguês, e tem uma parte longa em que ele narra o momento em que leva os filhos para uma festa. Eu mesmo tenho três filhos e pensei como é raro alguém escrever tão bem sobre as dificuldades, os prazeres e sofrimentos que é ter filhos e criá-los. Ele realmente entendeu isso e realmente falou comigo. É um puta prazer, mas também um puta saco criar os filhos e às vezes você fica louco. Encontrar alguém que descreveu tão brilhantemente essa experiência me fez sentir que eu não estava sozinho no mundo. Ele estabeleceu uma ligação real entre o isolamento ou, digamos, a loucura do leitor, e o que é comum a todo mundo.

Você concorda com Mamoon, quando ele diz que as melhores histórias são aquelas que não compreendemos?
É uma pergunta bem interessante. Quando leio poesia ou filosofia ou vejo um filme que não entendo totalmente, costumo gostar muito porque acho que tem alguma coisa ali para mim que está escondida em algum lugar que não consigo alcançar. Isso me acontece principalmente com poesia, em que há sempre algo enigmático que engrandece o texto. Como em qualquer grande obra de arte, seja ela a Mona Lisa ou Hamlet, existe algo que não conseguimos apreender.

Mamoon é sarcástico em relação aos cursos de escrita criativa. Acha que é possível aprender a escrever boa literatura?
Sou professor na Kingston University, onde tenho muitos alunos. Gosto de dar aulas, de estar perto deles e de ler alguns de seus textos. Mas não acho que um escritor precise de diplomas ou qualquer tipo de graduação para ser escritor. Seria a mesma coisa que ensinar rock’n’roll na universidade, ou heavy metal. E talvez nem seja uma boa ideia ensinar na universidade. Talvez fosse melhor um curso informal – algumas vezes eu faço isso. A maioria dos grandes escritores e poetas não teve aulas de escrita criativa. Então tenho sentimentos ambivalentes em relação a isso.

Quando descobriu que seria escritor?
Quando era adolescente. Eu era um garoto de pai indiano e mãe inglesa que vivia num bairro de brancos de direita. E eu era muito inquieto, mal comportado, desaparecia por dias. Nunca achei que poderia me acostumar com um trabalho considerado respeitável. Quando descobri que, como escritor, poderia falar de rock, racismo, drogas, islamismo, etc, isso pareceu uma solução para mim, um universo em que eu me encaixava bem. Com Minha Adorável Lavanderia vi que poderia viver da escrita. Antes eu escrevia para teatro e ganhava muito mal. Depois desse filme pude sentar com calma e escrever meu primeiro romance.

Nos dois primeiros romances, o autor explorou bastante a questão racial e os desdobramentos tragicômicos da mistura de culturas, tornando-se uma das vozes mais populares da chamada literatura pós-colonialista. Foto: Fotomontagem/Reprodução
Nos dois primeiros romances, o autor explorou bastante a questão racial e os desdobramentos tragicômicos da mistura de culturas, tornando-se uma das vozes mais populares da chamada literatura pós-colonialista. Foto: Fotomontagem/Reprodução

Um tema comum a todos os seus livros é a sexualidade, o hedonismo.
Cresci nos anos 1960 e nos 1970 estava bem envolvido com a sensualidade e paixão do movimento punk, da moda, da fotografia, da música pop. Naqueles dias havia essa celebração do prazer e do hedonismo. Logo depois da Segunda Guerra, a Grã-Bretanha era muito conservadora e retraída. Nos 70 a gente descobriu Jimi Hendrix, a dança, o homossexualismo, o sexo livre, o feminismo. Meus livros refletem muito os tempos em que vivi. A descoberta da sexualidade é um tema central em O Buda do Subúrbio. É um retrato do que acontecia no país naquela época, mais do que qualquer outra coisa.

O que mudou na sua visão sobre sexo?
Quando se é jovem, parece uma boa ideia experimentar o máximo que puder no campo da sexualidade, até descobrir as coisas de que realmente gosta. Mas você não pode fazer sexo o tempo todo. Chega uma hora que você quer alguém com quem possa conversar, alguém que cuide de você e de quem você queira cuidar, alguém que te faça falta, de fato. Sexo é uma parte muito importante, algumas pessoas até dizem que é a parte mais importante numa relação, mas no fim das contas você percebe que existem poucas pessoas no mundo que você realmente é capaz de amar e ter sexo.

O que acha do termo pós-colonialismo?
Antes, os escritores que falavam do império eram na maioria brancos da classe alta, como E.M. Foster, Graham Greene ou mesmo Evelyn Waugh, que tinham uma visão particular da África e Ásia. O que é interessante nos chamados escritores pós-coloniais, como Salman Rushdie, 

Zadie Smith e eu mesmo, é que falamos do ponto de vista das minorias que vieram das colônias. São vozes novas na cultura. Para mim foi assim que a cultura cresceu e se desenvolveu. Naquele momento, foi muito importante ouvir aqueles que não eram ouvidos antes. O que também se estendeu para quem lutava pelos direitos das mulheres, dos negros, dos gays.

Como vê o fundamentalismo islâmico?
Quando escrevi sobre fundamentalismo em Álbum Negro e para o filme My Son, the Fanatic, poucas pessoas estavam interessadas no assunto. Era algo visto como um fenômeno exclusivo do Terceiro Mundo, que envolvia alguns poucos malucos. Mas hoje é um assunto que interessa a todo mundo, a religião, como a religião se mistura com política, terrorismo, etc. E é um fenômeno mundial. Apesar disso, perdi um pouco o interesse ultimamente, ainda que eu ache que devemos discutir a fundo o assunto e estar envolvidos com o tema. Sou muito contra a religião. Acho que é algo muito limitador do intelecto. Quando o assunto é religião, especialmente o Islã, que considero muito perigoso, sou partidário do Nietzsche, acho que oblitera a imaginação e impede as pessoas de falar e pensar, é uma forma pesada de censura psicológica. E a ideia de se submeter a Deus, Maomé ou Moisés é horrível, acho que isso deveria mudar. Daí a importância da poesia, do cinema e da literatura, pois promove o livre pensamento e a possibilidade de discussão.

"A Última Palavra" -   Hanif Kureishi, Tradução de Rubens Figueiredo,  Companhia das Letras, 310 páginas. Foto: Reproduçcão
“A Última Palavra” – Hanif Kureishi, Tradução de Rubens Figueiredo,
Companhia das Letras, 310 páginas. Foto: Reprodução

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