Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde publicou portaria que redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. Entre as normas, reafirma a Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde e a resolução 34/2014 da ANVISA, que estabelecem que são inaptos a doar sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes” nos últimos 12 meses. Exclui-se assim, todos os homossexuais que tenham tido vida sexual minimamente ativa. Preconceituosa, a determinação perpetua um conceito de “grupo de risco”, ultrapassado e discriminatório.
O advogado Rafael Carneiro, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Humboldt de Berlim, representando o Partido Socialista Brasileiro (PSB), entrou com ação declaratória de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) contra essa norma do Ministério da Saúde. “É o mesmo que dizer que os homossexuais são promíscuos. Essa situação escancara o absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público brasileiro”, afirma Carneiro. “Ofende a dignidade dos envolvidos e retira-lhes a possibilidade de exercer a solidariedade humana com a doação sanguínea.”
Diante do massacre que ocorreu no domingo, em uma boate gay em Orlando, nos Estados Unidos, essas limitações se expressam de maneira cruel. No Brasil, estima-se que com essa norma, deixem de ser doados 19 milhões de litros de sangue. De acordo com dados divulgados pelo Hemocentro de São Paulo, uma única doação pode salvar até quatro vidas.
É frequente a situação crítica dos bancos de sangue. Hoje, Dia Mundial do Doador de Sangue, no Hemocentro de São Paulo há pouco estoque dos tipos O+, O- (o tipo sanguíneo “universal”), A- e B-.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi aceita, na última sexta-feira (10) pelo ministro Edson Fachin em “caráter definitivo”. Ou seja, não é “medida cautelar”, que seria transitória. Fachin deu 10 dias para que o Ministério Público, o Ministério da Saúde e a Advocacia Geral da União fossem ouvidos.
A ação sustenta ainda que as normas questionadas violam preceitos constitucionais como a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1o, III); o direito fundamental à igualdade (art. 5o, caput); o objetivo fundamental de promover o bem de todos sem discriminações (art. 3o, IV); e o princípio da proporcionalidade.
Contexto histórico
Na década de 1980, com o surgimento da epidemia da AIDS, causada pelo vírus HIV e transmitida por via sexual e de transfusão, determinou-se que um suposto perfil de pessoas estaria mais exposto à doença. Considerava-se “grupo de risco” todos aqueles que fossem homens homossexuais, hemofílicos ou dependentes químicos. Em 1993, o Ministério da Saúde proibiu, pela primeira vez, a doação de sangue de homens gays.
Com o avanço do conhecimento sobre a Aids, a epidemia foi controlada e a doença já não mata com a frequência de 20 anos atrás. Mudou também o foco de prevenção da doença. O último Boletim Epidemiológico de HIV e Aids, de 2015, mostra que o número de infecções registradas entre os anos de 1980 e 2015 é consideravelmente maior nos heterossexuais (50% dos casos notificados) do que nos homossexuais e bissexuais juntos (45,7% dos casos). Além disso, a proporção de novos casos em relação ao total da população brasileira caiu 5,5% em um ano: de 20,8 casos por 100 mil habitantes em 2013 para 19,7 casos por 100 mil habitantes, em 2014.
A Defensoria Pública da União também enviou recomendação ao Ministério da Saúde para que suprimisse a restrição. Em nota, diz que “a relação homossexual não indica necessariamente exposição a fatores de risco como atividade sexual sem proteção e com múltiplos parceiros”. Fica evidente o caráter homofóbico da norma.
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