Artigo: de que lado está o terror?

Manifestação de Black Blocs no Rio. Foto: Fernando Frazão/Fotos Públicas (31/10/2013)
Manifestação de Black Blocs no Rio. Foto: Fernando Frazão/Fotos Públicas (31/10/2013)

Foi aprovado no último dia 12 de agosto na Câmara dos Deputados projeto de “lei antiterrorismo” (PL 2016/2017), que segue agora para análise do Senado em regime de urgência. Assinado por dois ministros de Estado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, o projeto propõe o endurecimento do tratamento penal a “organizações terroristas, cujos atos preparatórios ou executórios ocorram por razões de ideologia, política, xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou gênero e que tenham por finalidade provocar o terror, expondo a perigo a pessoa, o patrimônio, a incolumidade pública ou a paz pública ou coagir autoridades a fazer ou deixar de fazer algo” (uma das emendas em plenário eliminou a palavra ideologia do rol acima).

Na justificativa do PL, os dois ministros afirmam a preocupação com as “organizações terroristas”, anotando que essas “caracterizaram-se nos últimos anos em uma das maiores ameaças para os direitos humanos e o fortalecimento da democracia”. Chamam atenção para “atentados em grande escala (…) que aterrorizaram populações inteiras ou determinadas minorias”. Mas ponderam: “em que pese [o Brasil] nunca ter sofrido nenhum ato em seu território”. É bastante curioso que, em meio a tantas questões urgentes no cenário nacional, dois ministros de Estado e duas casas do Congresso se mobilizem para aprovar, em regime de urgência, uma lei que regula um fenômeno inexistente no País.

A preocupação em acompanhar “o debate mundial” é expressa pelos Ministros na exposição de motivos para a lei. Em manifestação pública a favor do projeto, o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) também exorta o Brasil a fazer “parte do mundo civilizado, desenvolvido, que não quer o terrorismo”; um País que anda “pari passu com a ONU, com as organizações internacionais”.

Chama a atenção o caráter extravagantemente seletivo dessa preocupação. A necessidade de harmonização da legislação ao cenário internacional não move nossos representantes a promover reformas em um sem número de áreas em que nossa legislação está flagrantemente ultrapassada. Estamos na pré-história do debate sobre gênero e temos uma das legislações mais retrógradas sobre uso de entorpecentes do planeta, por exemplo. A pressão de organismos internacionais –  a exemplo do Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo), citado no documento legislativo – também é sentida de forma pouco uniforme por nossos representantes, vide a quantidade de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil que ainda não viraram norma jurídica interna. É, assim, muito  difícil compreender as razões políticas explicitadas na propositura e tramitação dessa neste momento.

Como boa parte dos fenômenos que estamos vivendo no Brasil contemporâneo, o projeto de lei “antiterrorismo” é uma mistura do arcaico e do globalizado. É possível identificar alinhamentos com as medidas antiterror que proliferaram em outros países especialmente após o 11 de Setembro – leis que diferenciam “cidadãos” e “inimigos” limitando direitos individual desses últimos, como o ato patriótico americano. Ao mesmo tempo, essa lei segue a abordagem linha dura das nossas conhecidas leis de segurança nacional, como a lei nº 7.170/1983, publicada durante o governo Figueiredo, recentemente ressuscitada e utilizada na repressão a manifestantes. O projeto ora aprovado foi antecedido por outros na mesma toada – PLs do senado ns. 707, 728 e 762, todos de 2011; e o PL 499/2013 da Câmara, proposto pós-manifestações de junho de 2013, não por acaso. Alguns desses citam expressamente a segurança na Copa de 2014 e os compromissos com a FIFA para justificar sua necessidade.

Todas essas leis têm em comum a proteção de bens suficientemente amplos e vagos para serem manipulados: “incolumidade pública”, “paz pública” “ordem política e social” etc.; e trazem tipos penais igualmente abertos, como “praticar ou infundir terror e pânico”. Usam como técnica legislativa a criminalização de condutas preparatórias, que prescindem de resultado danoso. Por exemplo, simplesmente guardar ou portar gás tóxico pode ser considerado um ato terrorista, assim como o simples pertencimento a uma alegada  “organização terrorista” – ainda que estas condutas jamais se desdobrem  em ações que lesionem algo ou alguém. Note-se ainda que as condutas ali descritas já são crimes (“lesão corporal, exposição da vida a perigo”, “lesão ao patrimônio” etc.), mas se praticadas pelo “terrorista” recebem um tratamento bastante mais grave.

A questão toda então é: como definir o “terrorista”? As pistas dadas pela lei, como mencionei, são amplas e manipuláveis – sujeitas, como quase tudo em direito, à interpretação pelos seus operadores. Desde a primeira versão desses projetos, representantes dos movimentos sociais vieram a público para falar do receio de serem alvo desse tipo de lei. Receio fundado, pelo histórico de aplicação das leis de segurança nacional, pelas tentativas anteriores de criminalização sofridas por algumas organizações como o MST, pela repressão penal aos protestos vista recentemente e pela atuação sempre seletiva do sistema de justiça criminal.

Diferentemente dos anteriores, o projeto atual faz a ressalva de que não se aplica à “conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais ou sindicais movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais”. E, com isso, dizem os ministros proponentes, “conseguimos afastar qualquer interpretação extensiva que possa enquadrar como ação terrorista condutas que não tenham esse perfil”. Essa certeza, contudo, merece perplexidade.

Ora, é justamente esse perfil que a lei deixa em aberto, deixando-o livre às mais distintas interpretações. É aí que está a disputa crucial que se vive hoje pela definição de formas de ação política legítimas ou ilegítimas. A lei não traça de modo claro a diferença entre o que é “coagir” o governo  versus “contestar, criticar, protestar”. “Propósitos sociais ou reivindicatórios” ou propósitos terroristas. A lei não define o que seja uma manifestação que afete a “incolumidade pública ou a paz pública”, nem as que “provocam terror”. Quais são as formas “legítimas” de ocupar o espaço público? Quais ações estão dentro dos limites do direito ao protesto? Pode portar vinagre? Pode usar capuz? Pode cobrir o rosto? Pode falar em descriminalização da maconha sem que isso seja considerado apologia ao crime? Pode marchar pela rua sem autorização prévia da polícia? E se o percurso combinado for descumprido? E se alguém botar fogo em um boneco, como aconteceu na primeira manifestação do MPL em junho de 2013, que suscitou a ação violenta da polícia?

Será que um ministro da Justiça pode se dar ao luxo de tamanha inocência ou desconhecimento de como o direito funciona? Ou mais especificamente, de como vem se construindo a relação entre direito, sociedade civil e movimentos sociais em nosso País?

Para seu governo, é exatamente o conceito de ordem pública e os limites do que é ação política legítima, baderna, crime ou, com a nova lei, “terrorismo” que está (e estará) em questão a cada encontro nas ruas entre manifestantes e policiais; a cada B.O. dos tantos que se lavram após cada ato de protesto; a cada inquérito policial aberto e a cada condenação ou absolvição que um juiz criminal proferir. A lei não resolve essa disputa, que  seguirá sendo  travada no dia a dia da atuação dos órgãos do sistema de Justiça criminal. A diferença é que, com a aprovação da lei, haverá um instrumento repressivo mais contundente, agora legal, para conter aqueles que forem considerados “inimigos” da ordem. Ao provável custo, porém, da amplificação do espaço para o exercício de arbitrariedades.

*Marta Rodriguez de Assis Machado é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Cebrap.

 

 


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