Para Rogério Sottili, secretário-adjunto da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, a redução da maioridade penal é um engano, cometido pela criação de um falso dilema. O jovem é vítima da violência, e não provocador dela. “É como se caísse um Boeing repleto de jovens a cada dois dias no Brasil. Segundo a Anistia Internacional, no ano passado, foram assassinados mais jovens no Brasil do que nas 12 zonas de guerra do mundo”, diz.
Sottili atribui à imprensa brasileira grande parte da responsabilidade por esse engano: “É vergonhoso o papel que grande parte da mídia brasileira faz. É impossível alguém ser contra a redução da maioridade penal lendo os jornais ou vendo os programas de televisão do País”.
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Antes de ir para a prefeitura de Fernando Haddad, Sottili foi secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República e secretário-executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, coordenador da campanha governamental pelo desarmamento e assessor especial da Casa Civil da Presidência da República.
Leia a entrevista completa abaixo:
Brasileiros – Há um argumento decisivo para não reduzir a maioridade penal no Brasil?
Rogério Sottili: Existem vários. O primeiro é que queremos trabalhar com os adolescentes infratores em uma perspectiva de superação da vulnerabilidade e toda a condição de pessoa em conflito com a lei. Portanto, defendemos a resocialização. Reduzir a maioridade penal, ao invés de ajudar a enfrentar o problema de fundo, vai agravar a situação. Um segundo argumento é que não há nenhum indicador que dê conta de que o sistema penitenciário – especialmente para jovens – é eficiente o bastante para fazer os infratores superarem essas questões. Ao contrário, os indicadores mostram que eles vão se tornar mais violentos e, provavelmente, aprofundar a condição de infrator da lei. Um desses indicadores, por exemplo, aponta que a redução da maioridade para 16 anos vai triplicar a reincidência, porque essa é taxa atual dos infratores do sistema prisional comum. Isso já é muito grave. A reincidência dos jovens internados hoje é de 20%, enquanto a dos criminosos adultos supera os 70%. Veja que os dados estão mostrando que essa medida só vai agravar o problema. Além de tudo, o jovem é vítima da violência, e não provocador dela: algo em torno de 82 jovens entre 16 e 29 anos são assassinados no Brasil a cada 24 horas. Calculando esse número com base anual, dá cerca de 30 mil assassinatos de pessoas na faixa etária juvenil por ano.
Violência em geral?
Sim. Ao analisar esse número, verá que é como se caísse um Boeing repleto de jovens a cada dois dias no Brasil. Segundo a Anistia Internacional, no ano passado, foram assassinados mais jovens no Brasil do que nas 12 zonas de guerra do mundo. Aí acontece um crime hediondo praticado por um adolescente, ganha as páginas de todos os jornais e programas popularescos e se torna uma comoção nacional. É um falso dilema! O jovem não provoca a violência, é vítima dela. E não é dizer que não tem punição para jovens, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê seis tipos de punição para pessoas nessa categoria etária.
Basicamente, a desigualdade é o problema a ser atacado para diminuir a criminalidade também entre os jovens?
É o principal fator. No entanto, temos de qualificar de alguma forma essa desigualdade: 80% dos jovens assassinados são negros. Existe um fator racial e, portanto, de preconceito, que também faz parte dessa explicação. É muito fácil dizer que, resolvendo a desigualdade social, a criminalidade será resolvida. É evidente que não é apenas isso, existem outras questões. Diminuir a maioridade penal é tirar a responsabilidade do Estado e colocá-la no menor que sofre violência. O Estado precisa enfrentar a violência levando políticas públicas para os locais onde os jovens estão em situação de vulnerabilidade, como são as periferias das cidades. Se o Estado melhorar as condições de uma praça, colocar uma estrutura de ocupação de cultura, de esporte, de compartilhamento público nesses locais, vai dar algo adequado para esses jovens em situação de vulnerabilidade. Nas periferias não há hoje pontos de esporte, de cultura, de nada. O que estou dizendo é que não basta colocar polícia na rua para resolver o problema da violência. O Estado não está cumprindo as suas atribuições e, então, quer jogar essa incapacidade nas costas dos meninos.
A cidade de São Paulo tende a ser o carro-chefe da opinião nacional sobre o assunto. O senhor encontra dificuldade em debater esse tema aqui?
São Paulo, por ser um Estado e ter uma capital muito rica, que acaba reproduzindo uma cultura de preconceito, é mais difícil esse processo de debate. Medidas do prefeito Fernando Haddad com distribuição de riqueza acabam sofrendo um enfraquecimento, seja por parte da Justiça municipal, pelo Ministério Público, pela Câmara e pela sociedade. Para que vamos colocar mais transporte público ou construir ciclovias? A burguesia quer carro na rua. Para que aumentar o IPTU de algumas classes para reduzir de outras? A questão da dívida de São Paulo é justamente um problema porque precisamos construir escolas públicas, creches, e quem vai usar esses equipamentos? A população. Então, a resistência em São Paulo é grande. Acho que isso tudo não seria um problema – e seria até parte da democracia – se não houvesse um fator extremamente grave: o papel dos meios de comunicação. É vergonhoso o papel que grande parte da mídia brasileira faz. É impossível alguém ser contra a redução da maioridade penal lendo os jornais ou vendo os programas de televisão do País. Acontece um crime em determinado local, é repercutido em todos os cantos do Brasil por dias. Não há um cidadão que não veja isso e não queira ver o menino que cometeu esse crime preso ou morto. Esse cidadão não tem dimensão do debate, não tem informação e, assim, não sabe, por exemplo, que cerca de 1% dos crimes hediondos no Brasil são cometidos por adolescentes. Mas não há uma reportagem que repercuta esse dado e outros. Ao contrário, todas as mídias preferem repercutir o crime, e não a dimensão.
E a classe média paulistana?
Está em posição extremamente forte, que não se preocupa com o fundão do Capão Redondo, com Guaianazes, com Jaraguá, com o Pêra Marmelo ou com qualquer outra periferia. Ela é alimentada diariamente por uma mídia que defende a maioridade penal, que vê o jovem como um assassino. O pior é que esse fenômeno transborda para as classes baixas, que acabam por defender a proposta de redução. A mídia potencializa com covardia esse debate. Não adianta reagir de forma raivosa ao problema. Como faremos para chegar essas informações que eu falei a uma ampla parcela da população? Esse é um dos pontos que precisamos discutir.
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