Francisco Julião: da literatura à revolução camponesa

Francisco Julião. Foto: Memorial das Ligas Camponesas
Francisco Julião. Foto: Memorial das Ligas Camponesas

Francisco Julião Arruda de Paula, nascido no Engenho Boa Esperança, agreste pernambucano, em 16 de fevereiro de 1915, teve um juventude de classe média, até certo ponto abastada. Sua entrada para a Faculdade de Direito era uma tendência entre aqueles que não só queriam a vida de bacharel ou carreira jurídica, mas que também tinham afinidades com o mundo da cultura, especialmente a literatura. No seu caso, prevaleceram a literatura e a militância, na contramão das origens burguesas.

Ainda estudante de direito, já advoga para os menos favorecidos: camponeses, prostitutas etc. Sua luta política vai se afirmando e, em 1945, lança o manifesto literário Carta aos Foreiros de Pernambuco, em que como dá voz aos cidadãos explorados, sublinhando as questões do foro e do cambão (a palavra “cambão“ expressa o dia de trabalho que o foreiro dá ao patrão sem receber nada em troca). Três meses depois, estava pronto para a criação das Ligas Camponesas, maior e mais significativo movimento de massas da vida republicana até então, nas quais desenvolve intensas reflexões sociológicas, antropológicas e econômicas, ligando-as a questões da cultura popular como a literatura de cordel, que ele declama para os camponeses, decodificando as metáforas do poder ali contidas.

Com o golpe de 64, as Ligas são dizimadas, seus líderes presos, torturados e assassinados. Julião é capturado e em 1965 parte para o exílio no México, de onde só voltaria em 1979, com a anistia. Decepcionado com os rumos da luta no Brasil, volta ao país de Zapata em 1986, onde acaba morrendo, em 1999.
O lado escritor

Conhecido principalmente pela sua histórica atuação política, Julião é um escritor esquecido. Embora não tendo uma obra extensa, ela é significativa para o momento político que viveu. Dois nomes buscaram enfatizar essa verve: Vandeck Santiago, jornalista do Diário de Pernambuco, com passagens pela Veja, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, e cinco livros publicados, dentre eles o premiado Francisco Julião – Vida, paixão e morte de um agitador (Edição da Assembleia Legislativa, PE, 2001) e, mais recentemente, Cláudio Aguiar, romancista, dramaturgo, ensaísta e poeta, autor de Francisco Julião –uma biografia (Civilização Brasileira, 2013). Ambos pernambucanos como o foi o Julião. Conversamos com os dois:

Vandeck Santiago:

Interpretação dos cordéis
“Um dos mais famosos folhetos produzidos no Nordeste, A Chegada de Lampião no Inferno, é analisado por Julião como ‘um exemplo típico de literatura e caráter ideológico’. Segundo ele, o inferno aí descrito – com vigia, cerca, portão, depósito de algodão, vidraça e casa de ferragens – não é outra coisa senão ‘a fazenda do latifundiário’. Lampião, por sua vez, ‘representa o próprio camponês que deseja conquistar tudo aquilo’”.  “Outro combate célebre na literatura de cordel, A Eleição de Lúcifer e a Posse de Lampião, evidenciaria, para ele, ‘a revolta dos camponeses contra as eleições’. A maioria deles não votava, porque não havia ainda o direito do analfabeto ao voto. Os que votavam o faziam quase sempre seguindo a recomendação do coronel do lugar. Em A Eleição… Lampião contesta o resultado de um pleito no inferno e sai matando todos os diabos que encontra pela frente, findando por tomar posse do governo. ‘A ideia de inferno’, dizia Julião, ‘o camponês sempre associa a de latifúndio’”.

Produção literária
“A militância política de Francisco Julião sufocou uma vocação dele que, saudada por críticos e escritores nacionais nos anos 1950/1960, hoje é praticamente desconhecida – a de escritor de ficção. São de sua autoria dois livros no gênero: Cachaça, de contos, lançado em 1951 (quatro anos antes do movimento das Ligas), e Irmão Juazeiro, romance, de 1961. As obras receberam elogios de nomes como Gilberto Freyre, Fábio Lucas e Roberto Simões”.

“Além desses dois livros de ficção, ele lançou Que são Ligas Camponesas (1962); Até quarta, Isabela (1964); Brasil: Antes y despues, 1968 (este nunca publicado no Brasil; foi lançado no México); Cambão, a face oculta do Brasil (1968), publicado originalmente no México e que teve uma edição brasileira em 2009. Em formato de cartilhas ou folhetos de cordel, ele publicou no Brasil, no período em que estava atuando nas Ligas Camponesas: Guia do Camponês; ABC do Camponês; Cartilha do Camponês; Carta de alforria do Camponês e Bença, mãe. Ele escreveu também a letra do “Hino do Camponês” (1961), gravada depois com parceria do maestro pernambucano Geraldo Menucci. Ao voltar do exílio, ele gravou o LP “Julião, verso e viola” (1981), com três longos poemas em forma de poesia de cordel. Nesse disco (praticamente desconhecido, porque foi censurado), ele foi acompanhado ao violão pelo irmão do Betinho, o compositor e violonista Francisco Mário. Gilberto Freyre e Francisco Julião sempre estiveram em campos opostos nas questões políticas e ideológicas. Freyre, por exemplo, apoiou o golpe de 1964. Mas os dois eram amigos: tinham afinidades intelectuais e frequentavam ambientes comuns da intelectualidade pernambucana. “

Claudio Aguiar:

Julião e a literatura
“Julião, antes da fama como politico, cultuou os gêneros da poesia, do conto e da prosa. A poesia perdeu-se devido aos efeitos danosos do exílio. Escaparam o livro de contos Cachaça e o romance Irmão Juazeiro. Ambos alcançaram relativo sucesso, embora os contos tenha tido maior sorte. O prefácio de Gilberto Freyre atende, talvez, ao sentido sociológico e antropológico de que se revestem as histórias marcadas pelo conhecido pendor que tem o povo brasileiro pela aguardente. A fatura de Julião como contista e romancista é positiva e, estimo que, não fora o seu envolvimento com a política e a defesa dedicada a uma causa edificante – a defesa dos camponeses brasileiros – estaríamos diante de um talentoso escritor brasileiro. Isso, porém, não reduz o mérito de sua obra conhecida.”

A literatura como instrumento da luta política
“Não creio que no caso de Julião se possa afirmar que ele usou a literatura como arma política. A razão é simples: sempre houve nele a vocação literária antes de acordar nele o líder político. A política, ao contrário, cresceu tanto em sua vida que o tempo foi pouco para ele dedicar-se às letras como autor. O recurso por ele utilizado na produção de panfleto, às vezes, recorrendo ao cordel, é procedimento velho e adotado desde as épocas mais remotas dentro do próprio costume português, quando, por exemplo, nos lembramos do caso do sapateiro Bandarra, que cantou a vinda de D. Sebastião numa espécie de epopeia popular subordinada ao recurso da expressão dos árabes, então dominadores de boa parte de Portugal.”

Obras inéditas
“Há uma grande produção dispersa em jornais, revistas, anais legislativos e ampla correspondência ativa. Esse material merece ser pesquisado e preservado, pois nele podem ser identificados alguns aspectos importantes de seu pensamento politico e registro de um tempo rico de nossa história recente. Disponho de alguns textos inéditos que futuramente poderão ser divulgados. Quando estive no México pesquisando o tempo de exílio de Julião, uma de minhas primeiras preocupações foi coletar toda sua colaboração publicada nessa importante revista Mexicana. O valor desse periódico, para dar uma ideia, só pode ser comparável à revista O Cruzeiro. Eu não apenas recuperei toda a colaboração, que prosseguiu sem interrupção por mais de dez anos, mas a organizei por temas e assuntos e elaborei estudo de análise para publicar, em breve, em volume especial, sob o títuto de Escritos Políticos do Exílio. Trata-se de um repositório de elevado nível, dado que ele como profundo e perspicaz intérprete de seu tempo, estava bem informado do que se passava nas Américas, na Europa, na Ásia e na África, sem falar nos temas brasileiros de vários matizes.”

*Stella Maris Saldanha, nasceu em Goiás, mas reside no Recife onde atua como jornalista e atriz. É também professora da Universidade Católica de Pernambuco. Publicou o livro Transgressão em 3 Atos – Nos abismos do Vivencial, em parceria com os jornalistas Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra. É diretora e roteirista do documentário Alexina, memórias de um exílio, também em parceria com Claudio Bezerra. Este trabalho foi vencedor do VII Concurso de Roteiros para Documentários Rucker Vieira, da Fundação Joaquim Nabuco e TV Brasil.


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