O tri da Seleção e o tetra do Gil

gil_skin1971Mais de quatro décadas se passaram, mas ainda hoje é possível ouvir a argumentação rasa de que o exílio imposto pelo AI-5 à Gilberto Gil e Caetano Veloso foi, na verdade, uma excursão pelos dias finais do hedonismo vigente na Swinging London. Claro, depois desse episódio, muito de generoso aconteceu na vida de ambos, mas ninguém em sã consciência haverá de acreditar que dois jovens compositores em plena consolidação de suas carreiras em terra natal e com aguda intenção de experimentação para os caminhos estéticos percorridos por nossa música popular estaria feliz por serem obrigados a abandonar a pátria-mãe e, consequentemente, abortar trajetórias tão bem perseguidas como as de Gil e Caetano. Antes de serem presos arbitrariamente em São Paulo e levados ao Rio de Janeiro, em 27 de dezembro de 1968, catorze dias após o decreto do AI-5, os baianos haviam causado grande rebuliço no cenário da música popular, ao criar e enterrar um novo movimento, de intenções modernizantes, chamado por eles de Tropicalismo. A influência do gesto de romântica guerrilha cultural liderado pelos dois não resultou em êxitos comerciais, mas o flash mob que uniu a eles Rogério Duprat, Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Torquato Neto, Capinam e os Mutantes, arejou mentes, expandiu percepções e continuou a render outros bons frutos da tal antropofagia sonora, tratada pela dupla de jovens compositores baianos como “Som Universal”. Vestígios esparsos, ou exuberantes, da proposta coletiva tratada como manifesto no álbum Tropicália ou Panis et Circensis puderam ser percebidos na discografia posterior de artistas aparentemente díspares, como os Novos Baianos, Jorge Ben, Gal Costa, Luiz Melodia, Som Imaginário, Sergio Sampaio e até Odair José, na ópera-rock O Filho de José e Maria.       

Depois de terem as cabeleiras raspadas, Gil e Caetano enfrentaram dois meses de cárcere, foram libertados, na Quarta-Feira de Cinzas de 1969, e permaneceram no País, “livres”, por mais quatro meses  – eram, na verdade, 24h cerceados pelos militares, que faziam a eles, ou a eles exigia, visitas diárias –, até que a saída menos traumática proposta pelo governo do general Médici foi o exílio. Dias antes de partirem para Londres, Gil lançou nas rádios de todo o País uma nova composição, de forte simbolismo, intitulada Aquele Abraço. Mas o samba-canção não foi o único ato de despedida empenhado pelos conterrâneos. Nos dias 20 e 21 de julho de 1969, às vésperas de partirem, eles fizeram um par de shows emocionados, no Teatro Castro Alves em Salvador, acompanhados do guitarrista Pepeu Gomes e seu irmão, o baterista Jorginho, o baixista Carlinhos e o guitarrista-base Lico. O show ganhou o simbólico nome Barra 69, foi registrado, mesmo que precariamente, e lançado em LP, pela Philips, em janeiro de 1971. Na contracapa do LP, o produtor Guilherme Araújo reitera a importância da bolacha, de baixa fidelidade, mas de alto significado do momento opressor vivido por todos no País: “Não importa o que Cae e Gil fizeram depois ou o que ainda vão fazer. Não interessa a má qualidade técnica da fita. Não interessa a opinião de músicos que não sabem ouvir. Essa fita é emoção e a primeira explosão de vocês. Essa fita encerra uma fase das carreiras de Cae e Gil e passa a jogada pra vocês”.     

Araújo já estava em Londres, quando os shows de despedida foram realizados. Por motivo compulsório, esse foi o primeiro espetáculo de seus pupilos não dirigido e produzido por ele, desde que começaram a trabalhar juntos. Mas, com o inusitado encontro no Velho Mundo, ele preparava terreno para dar prosseguimento internacional às carreiras de Gil e Caetano. Mesmo não tendo carta branca da Philips para lançar novos álbuns de ambos pelo selo holandês, o diretor artístico André Midani acabou por encontrar uma saída razoável. Leslie Gould, executivo da Philips britânica havia acabado de romper com o selo e iniciar atividades em uma pequena gravadora, responsável pelo lançamento de trilhas sonoras originais de filmes da Paramount e dirigida, a convite de Gould, pelo pianista e produtor Ralph Mace.

Em apresentações regulares nos inferninhos londrinos, na base da voz e do violão, o baiano já havia chamado a atenção de Mace e se enturmado com uma série de músicos excepcionais da cena britânica, como Jim Capaldi, do Traffic, além de ter feito jam-sessions com estrelas do porte de David Gilmour, do Pink Floyd, e o jazzista Wayne Shorter. Com o suporte do triângulo Midani, Gould e Mace, o caminho do mercado europeu estava aberto para Gil e Caetano, e a distribuição no Brasil dos futuros LP’s, pela Philips local, estava garantida – primeiro a entrar em estúdio, no segundo semestre de 1970, Caetano lançou naquele mesmo ano seu álbum britânico, também homônimo e, até mesmo pelo caráter adverso, tema para uma futura coluna.

Gilberto Gil caminha pelas ruas de Manhattan (arquivo pessoal, 1970)
Gilberto Gil caminha pelas ruas de Manhattan (arquivo pessoal, 1970)

Registrado no início de 1971, no Chappell’s Studio, reunindo um apanhado de novas e antigas composições em inglês, o quarto álbum de carreira de Gilberto Gil é impregnado de disparatadas doses de melancolia, saudade, altivez e despojamento. Apesar de Gil se desdobrar em uma mesa de 24 canais, sobrepondo percussões, camadas de violões e contrabaixo, não há no LP traços da exuberância estética de seu álbum anterior. Também homônimo, mas tratado pelos fãs como “Cérebro Eletrônico”, o disco, de 1969, foi feito às vésperas do exílio, com o auxílio luxuoso dos arranjos do maestro Rogério Duprat, o acompanhamento dos Mutantes e do baterista Wilson das Neves (leia post sobre o músico). Para sua estreia internacional, Gil contou apenas com a presença do baixista Chris Bonnet e do guitarrista Mick Ronson, célebre, depois, por suas colaborações com David Bowie e os Spiders From Mars.

Talvez influenciado pela proximidade com uma cena transitória do tradicional rock britânico, que saía do psicodelismo para experimentar outras dimensões e, com o “fim do sonho” (cantado por Gil em Expresso 2222, na belíssima O Sonho Acabou), caia na divisa que levou ao rock progressivo, ao fusion e ao jazz-rock, gêneros ensimesmados pelo virtuosismo, correndo pela contramão, Gil seguiu à procura de um som colaborativo e orgânico, sem a vaidade de imposição pela técnica (que ele, aliás, já tinha de sobra), mas pela beleza do encontro. Como o álbum inglês de Caetano, o de Gil teve resultado inexpressivo de vendas, mas assim como o amigo preparou terreno para Transa,  Gil armou-se, depois, de um power trio, ao se aventurar, ao lado do baterista Tuty Moreno e do baixista Bruce Henry, em pequenos palcos da Europa e dos Estados Unidos. E foi com esse mesmo trio que o baiano começou a moldar a sonoridade agreste, nordestina, e ao mesmo tempo rock, folk e bluesy de Expresso 2222, com o acréscimo determinante do guitarrista Lanny Gordin. 

Em julho de 2009, em minha segunda colaboração para a Brasileiros, entrevistei Gil justamente para tratar dos 40 anos de seu exílio, momento capital em sua trajetória, representado em álbuns como esse título estrangeiro e Barra 69. Momento que agora chega as quatro décadas e meia.

Quando Caetano gravava seu LP pela Famous, o Brasil sagrou-se tri-campeão do mundo de futebol em solo mexicano. Em sua autobiografia Verdade Tropical, o baiano lembrou o furor causado pela chegada de uma bandeira verde-amerela, no apartamento em Londres. Para a maioria dos brasileiros que por ali passava, aquele era simbolo de alienado ufanismo. Muito se discute até hoje sobre a manipulação política daquela conquista, da capacidade daquele triunfo tornar o povo ainda mais cego às atrocidades cometidas pelos militares, da alegria anestésica e espetacular de um futebol praticante da beleza. Em tempos de Copa do Mundo no Brasil, vale ressaltar o quanto este quarto álbum de Gil, mesmo feito sob a égide de um momento a ser esquecido, e sob recursos adversos, tem também um sabor de vitória, de resistência e abertura de novos caminhos para um artista fundamental. Mesmo não sendo tão inventivo e memorável como seu sucessor Expresso 2222 – ou, como o quarto título da Seleção Brasileira, nos EUA, em 1994 – ninguém há de contestar que este é um autêntico trabalho de Gilberto Gil, seu legítimo “tetra”.

Ouça a íntegra de Gilberto Gil

Confira o repertório da reedição em CD, de 2001, que incluí versões ao vivo dos Beatles (Seargent Peppers Lonely Hearts Club Band), Blind Faith (Can’t Find My Way Home, de Steve Winwood, também presente em registro de estúdio na versão original, de 1971) e Jimi Hendrix Experience (Up From The Skies), no Allmusic.

Boas audições e até a próxima Quintessência!  


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