“Fui carregado como um saco de lixo”, afirma estudante

Durante intervalo estudante e namorada sentados no palco
Estudante – com a frase “EE de Luta” pintada nas costas – e sua namorada aguardam a apresentação da atriz Letícia Sabatella (foto: Marcelo Pinheiro)

A Praça Horácio Sabino, espaço público de Pinheiros, na zona Oeste de São Paulo, que fica em frente a Escola Estadual Professor Alves Cruz, foi transformada ontem em palco principal da Virada da Ocupação, evento cultural em solidariedade aos estudantes da rede pública estadual de ensino que, desde o início de novembro, ocupam cerca de 200 escolas para exigir o fim do plano de reorganização proposto pelo governador Geraldo Alckmin medida que, se cumprida, resultará no fechamento de 93 unidades de ensino.

Mesmo com o anúncio feito pelo governador tucano na última sexta-feira, 4.12, de que suspenderia o projeto de reorganização – declaração confirmada no dia seguinte com a publicação no Diário Oficial da revogação do decreto de lei que previa a implantação do programa no início do ano letivo de 2016 – os estudantes continuam irredutíveis e devem dar continuidade às ocupações e aos protestos em vias públicas.

Secundaristas ouvidos por Brasileiros durante a Virada da Ocupação afirmam ter comemorado o recuo de Alckmin e, horas depois, os pedidos de demissão do Secretário Estadual de Educação, Herman Voorwald, e de seu chefe de gabinete, Fernando Padula, porém consideram que a suspensão não assegura que a reorganização e o fechamento de escolas serão, de fato, extintos. Além disso, motivados com a adesão em larga escala nas ocupações, pretendem agora pleitear o que consideram uma verdadeira reorganização: a implantação de um plano efetivo de melhorias em toda a rede estadual de ensino.             

Solidariedade

A Virada da Ocupação teve início ontem e será encerrada hoje, 7. 12. O evento gratuito, organizado pela ONG Minha Sampa, envolveu espaços públicos como a Praça Horácio Sabino, além de escolas estaduais em ocupação, e contou com a colaboração de mais de 2 mil voluntários e dezenas de artistas, entre eles, Criolo, Bárbara Eugenia, Bixiga 70, Cidadão Instigado, Céu, Arnaldo Antunes e Pequeno Cidadão.

Às 21h de ontem, 6.12, mesmo em meio à chuva que transformou o chão de terra batida da Horácio Sabino em um verdadeiro lamaçal, centenas de pessoas aguardavam as três apresentações finais – os shows de Tiê, Arnaldo Antunes e da atriz Letícia Sabatella que, acompanhada de um trio, encerrou a programação cantando clássicos da MPB e do jazz, como Geni e o Zeppelin, de Chico Buarque, e What a Wonderful World, de Louis Armastrong.

A maratona de shows na Horácio Sabino teve início às 13h e foi encerrada por volta de 23h15, com um mutirão para limpeza do espaço.  

Leia a seguir depoimentos dos três artistas, de duas integrantes da Liga dos Palhaços, que divertiram a plateia no intervalo das apresentações, e uma entrevista exclusiva com dois estudantes da Escola Estadual Fernão Dias Paes, também sediada em Pinheiros. Um deles, Elissandro Dias Nazaré da Siqueira, secundarista, de 18 anos, que cursa o terceiro ano do Ensino Médio, foi detido na última quarta-feira, 2.12, durante protesto em frente ao colégio. A imagem da operação policial causou indignação nas redes sociais. Algemado e sem camisa, o estudante foi conduzido, de forma truculenta, por cinco policiais (veja vídeo da ação divulgado pela revista Vaidapé).                  

O apoio dos artistas

“Todo mundo junto, sempre, vai ser demais. Parabéns por isso! Que bom que a gente está aqui hoje. Um momento lindo de se ver. Estou feliz em estar aqui, e torço por vocês. Todo mundo junto: ‘bora’ lutar!” 
Tiê

“Os estudantes de São Paulo estão dando uma lição de cidadania para todo o Brasil. É uma grande inspiração para a sociedade a gente saber que deve e pode defender nossos direitos. Vamos lá!” 
Arnaldo Antunes

“Sinto que esse é um momento de mudança, porque os jovens estão se movimentando para defender seus direitos e suas opiniões. Uma coisa nova. Acho muito poderoso, significante e maravilhoso.” 
Josefina Schiller, a palhaça Pedrinho

“A gente sempre ouve dizer que as crianças são a esperança no futuro e a gente está vendo que é isso mesmo. Quando nos apresentamos nas escolas, os adolescentes riem, mas também choram, porque ao mesmo tempo em que estão fortes, resistindo, também estão frágeis emocionalmente. Eles estão em uma maratona de enfrentamento.
Elaine Geissler, a palhaça Átila

Uma coisa que eu nunca imaginei: que algum dia veria a morte de um rio. No entanto, o Rio Doce está morto. A que ponto chegamos! Que esse seja o limite e que a gente repense novos modelos de desenvolvimento. A gente não está aqui para formar tecnocratas, mas cidadãos. Agradeço a esse voluntariado maravilhoso, a todos os artistas e principalmente a vocês, estudantes. Agradeço a resistência, a perseverança e a beleza de caráter que há em cada um de vocês. Vocês, jovens, são nosso mundo maravilhoso. Fico feliz por estar com vocês.
Letícia Sabatella

“Vamos continuar na luta”

Grupo de estudantes que participou, ontem, da Virada da Ocupação
Reunidos no palco da Virada da Ocupação após o término do evento, da esq, para a dir., os secundaristas Rafael Pablo Abreu, Alícia Esteves, João Vitor Santos Oliveira, Clara Esteves, Heudes Castro da Silva Oliveira e Elissandro Dias Nazaré da Siqueira. Irmãs gêmeas, Alícia e Clara são da rede privada, mas aderiram às ocupações em apoio a amigos (foto: Marcelo Pinheiro)

Em depoimento após o fim da apresentação de Letícia Sabatella, Elissandro Dias Nazaré da Siqueira, 18, e João Vitor Santos Oliveira, 17, estudantes do ciclo noturno do terceiro ano do Ensino Médio da Escola Fernão Dias Paes, relataram à reportagem de Brasileiros bastidores da rotina no colégio, o segundo a ser ocupado no Estado, em operação realizada em 9.11, um dia após a Escola Estadual Cefan Diadema ser tomada pelos alunos da instituição de ensino do município do ABC Paulista. Detido na última quarta-feira e liberado no mesmo dia, Elissandro também esclarece como se deu a operação que culminou em sua prisão.

Brasileiros – Como se deu a organização para a ocupação da escola Fernão Dias Paes?
João Vitor – Estamos em luta desde o começo de outubro, quando nos mobilizamos para planejar a ocupação da escola. Mesmo com a queda do chefe de gabinete e do secretário vamos prosseguir lutando, porque queremos garantias do cancelamento total do projeto, não somente a suspensão.

Elissandro – Queremos que ele (o governador Geraldo Alckmin) ouça também outras demandas. Vamos propor a melhoraria dos recursos e investimentos em tecnologia, mas também queremos que as escolas tenham coisas básicas, como bibliotecas e quadras esportivas abertas nos fins de semana. A educação pública é péssima e essa proposta de reorganização do governo serviu como um empurrão para a gente partir para a luta.

A direção da escola sabia do plano de vocês?
João Vitor – Não, a escola não sabia porque tudo começou no anonimato. Cerca de 20 alunos do Fernão decidiram como seria a entrada na escola. O plano de ocupação deu certo, mas, nos quatro primeiros dias, fomos “encarcerados” pela polícia, que cercou toda a escola. Nesse primeiro momento, foram feitas várias ameaças de que todos nós iríamos parar na delegacia, mas a Justiça reconheceu que a ocupação era um meio legítimo para lutar contra a reorganização e o fechamento das escolas, e não um caso de polícia.   

Como tem sido esse período de convivência?
João Vitor – Mudamos principalmente a maneira que a gente pensa a escola. Acho que todos os estudantes envolvidos nas ocupações se desenvolveram politicamente para ter autonomia, enfrentar a direção das escolas e as ameaças do estado, porque tiveram que lidar com a repressão da polícia. Muitos adolescentes vêm se formando nesse processo e aprendendo a se organizar politicamente. Por mais que a gente ainda não tenha conseguido o que a gente quer, que é o cancelamento total do projeto, nesse primeiro momento, conseguimos ao menos a suspensão, mas sabemos que pode haver um declínio dessa medida e vamos continuar na luta.

Vocês tem enfrentado repressão nos protestos de rua?
Elissandro – Eu, por exemplo, fui carregado como um saco de lixo por cinco policiais, algemado e preso. Um deles pisou na minha cabeça. Apesar de isso ter me causado um trauma, acho que cenas como essa contribuem para as pessoas irem contra a medida do governador. Acho que, por isso, valeu a pena.

Como tudo aconteceu?
Elissandro – Eu só me defendi. Um amigo meu levou um soco no rosto, reclamei com o policial e fui pego pelo pescoço. Disse a ele que ele não podia agredir meu amigo, porque ele é menor de idade, e o chamei de fascista. Isso aconteceu na Avenida Faria Lima. Fui liberado, mas quando voltei para a frente do Fernão ele me reconheceu, soltou uma bomba de efeito moral perto de mim e veio com outros dois policiais em minha direção. Tentei resistir, me defendi e fui atingido com vários socos nas costas. Quando caí, ainda pisaram na minha cabeça. Depois fui parar na delegacia.

E seus pais, como reagiram?
Elissandro – Eles estão muito preocupados com o que pode acontecer comigo, mas me incentivam a continuar.

Vocês acreditam que há manipulação político-partidária nesse movimento de ocupações?
Elissandro – Essa conversa é uma jogada do governador e da mídia para convencer a população de que há interesses políticos nas manifestações. E isso não existe. O que têm são estudantes lutando pelo direito a educação. O estado se coloca como vítima, mas as vítimas somos nós. Lutamos em causa própria. A crise no ensino foi causada pelo estado e nós é que sofremos com ela. Quem paga é sempre a gente, a população que está embaixo.

João Vitor – As ocupações acontecem de forma autônoma. É um movimento auto-organizado dos estudantes, sem nenhum envolvimento de partidos políticos. Nas mais de 200 escolas ocupadas pode haver um ou outro secundarista que pertença a partidos políticos, mas que estão ali individualmente, como cidadãos. Não abriremos espaço para partidos ou qualquer influência externa de lideranças políticas. Somos estudantes que vêm de escolas muito precarizadas e estamos compondo essa luta, de forma independente, contra um governo elitista e conservador que massacrou manifestações como as greves dos metroviários e dos professores. Um governo que impôs um histórico de mais de dez anos de derrotas da classe trabalhadora. Pela primeira vez, a popularidade do governador está caindo. Depois da suspensão, o secretário e chefe de gabinete da Educação caíram. O governador teve de ir em público para anunciar um recuo.

Em um ambiente, segundo vocês, tão precário, como é possível surgir grupos de alunos tão participativos?
João Vitor – Alguns já vinham de organizações surgidas nos processos que aconteceram nos últimos anos. Eu, por exemplo, participei do MPL (o Movimento Passe Livre) e também faço parte do Mal Educado (movimento de estudantes secundaristas que mantém a página de mesmo nome no Facebook). Isso não começou agora, e durante esse processo o número de estudantes foi crescendo. Muitos dos que estão envolvidos nas ocupações participaram dos protestos de 2013 e passaram por um processo de formação de consciência política que mudou suas vidas. Saíram de uma postura passiva e agora sabem que têm direito ao poder reivindicativo. Queremos que as escolas sejam reorganizadas de verdade e que nossas verdadeiras demandas sejam realmente atendidas.

Ironia como arma  

A seguir alguns os gritos de ordem e cantos entoados pelos estudantes durante a Virada da Ocupação na Praça Horácio Sabino.

“Que vergonha, que vergonha deve ser / Que vergonha, que vergonha deve ser: reprimir o estudante pra ter o que comer.”

“Era um estado muito engraçado não tinha escola, não tinha água / Ninguém podia fechar avenida, porque a mídia era vendida / Ninguém podia protestar, não / Porque a PM descia a mão / Governador, fala a verdade: educação não é prioridade”

“O Estado veio quente / ‘Nóis’ já tá fervendo / Quer desafiar? / Mexeu com estudante você vai sai perdendo!”

“Boa noite, seu Geraldo, como vai? / Filho do Cunha!” (frase cantada em pergunta e resposta)


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