Um dia já se entendeu que o inconsciente é uma espécie de depósito de sentimentos, cuja existência não queremos admitir e cujo conteúdo é malicioso ou desagradável. Esse armário de intimidades parece fora de moda diante da nova etiqueta da exposição de fantasias, do uso público da intimidade, que faz nossa experiência social compartilhada oscilar entre o Big Brother e o Stand Up. A versão brasileira desse envelhecimento do inconsciente deflagrou-se nos últimos tempos pela ascensão social da percepção de que o poder perdeu a vergonha, de que a religião perdeu a culpa e de que as pessoas comuns suspenderam o sentido de civilidade. Chegando ao fim do armário, ali onde não há mais nada para recalcar, até mesmo nosso habitual cinismo foi substituído pela moral bruta da delação premiada. Finalmente, nos tornamos, então, em um povo com o inconsciente a céu a aberto, em estado de guerra hobbesiana permanente, na qual ricos e pobres preparam-se para o confronto final. Regredimos aos nossos ancestrais antropófagos tupinambás, transparecendo nossa fixação hedonista na sexualidade sem peias.
Não creio em absoluto nesse retrato. Em primeiro lugar porque o inconsciente não é um depósito, mas uma hipótese. Uma hipótese é uma ficção ou uma suposição necessária para chegar a um determinado lugar, que em verdade se intenciona de antemão saber qual é. Um sonho, uma troca involuntária de palavras, um desencontro fortuito de intenções, só se torna uma verdadeira formação do inconsciente quando acrescentamos a isso uma hipótese. Uma suposição de que esse evento quer dizer algo, ou negar algo, no contexto de relações sociais. Em outras palavras, o inconsciente só se torna eficaz se é inserido em um processo social, no qual perguntamos: “O que isso diz para quem?”.
Na identificação, troca-se desamparo por segurança a preço de subserviência. Aqui não há hipótese alguma, apenas confirmação e replicação do que já sabíamos, para consumo interno de nosso condomínio
Genericamente, as hipóteses se dividem conforme elas transformem ou não transformem quem as enuncia. Por exemplo, a hipótese da gravidade não altera a posição ou natureza dos corpos que são afetados por ela. A força da gravidade continua igual, e nós continuamos iguais diante ela, antes e depois Newton propô-la como hipótese. Contudo, há outro tipo de hipóteses, que podemos chamar de transformativas. Elas possuem a propriedade de afetar aquele que a enuncia, modificando a natureza e função das relações no interior das quais ela é levantada. Por exemplo, um marido chega em casa tarde e pergunta para a esposa: “Querida, vamos supor que eu esteja te traindo?”. Esteja ele ou não factualmente praticando o ilícito, a relação mudou: instalou-se a dúvida, queremos saber o porquê da pergunta, as razões de sua aparição naquele momento. Tais hipóteses transformativas são há muito conhecidas pela sabedoria popular como casos do adágio: “O gato subiu no telhado”. Dizer que o inconsciente é uma hipótese significa que ele é uma suposição que nos transforma, desde que nos empenhemos em localizar e descobrir, a cada momento, quem é o sujeito dessa hipótese.
Tanto a economia quanto a sociologia ainda lidam muito mal com hipóteses transformativas, apesar de reconhecer indiretamente sua importância. Por exemplo, a interpretação que os “analistas de mercado” fazem sobre o futuro interfere ou não no presente de nossa realidade econômica? A percepção social da violência, envolvendo sua intensidade e disseminação, interfere ou não na produção real da violência? A interpretação de que a corrupção atravessa todos os setores do governo, da política e das corporações, favorece ou dificulta que a realidade atual da corrupção se transforme?
É por isso que não creio no retrato do Brasil pós-carnavalesco. O retrato no qual a máscara de Dilma caiu, revelando a face oculta de Lula, cuja maquiagem escondia, por sua vez, a verdade de Dirceu, em baixo da qual jazia a cara caída dos petro-monstros, que é só uma segunda pele dos empreiteiros, que são a mais pura expressão dialética do espírito popular interessado em levar vantagem em tudo, cuja síntese cínica é Eduardo Cunha, nosso novo herói sem caráter. Esse retrato não é uma hipótese, mas uma identificação. Lembremos que uma hipótese transformativa deixa indeterminado quem é exatamente o sujeito que a formula. No caso de uma identificação, não há espaço para esta dúvida. Sabemos muito bem quem é o sujeito ao qual se aplica a retórica do desmascaramento: o outro. Quanto a mim, posso me contentar em gozar alegremente de minha exterioridade com relação a “tudo isso que está aí”. Posso votar em quem quiser e não me lembrar, posso me demitir do espaço público, posso me desresponsabilizar pelo Brasil, afinal ele é do outro.
Quanto mais investimos em identificações, menos trabalhamos em busca de novas hipóteses. Lembremos: identificações confirmam o que já sabíamos, hipóteses criam novos sujeitos. Quando frequentamos retóricas públicas que exploram a violência, a paixão da fé ou o jornalismo apocalíptico há uma espécie de contágio de perspectivas. Saímos com a sensação de que o mundo lá fora é perigoso, incerto e sujo. Primeiro, somos inoculados com uma dose de medo, em seguida vem a falsa coragem, afinal formamos coros descontentes, limpos e convictos. Finalmente, vem o ódio que nos une porque temos um inimigo comum. Na identificação troca-se desamparo por segurança a preço de subserviência. Aqui não há hipótese alguma, apenas confirmação e replicação do que já sabíamos, para consumo interno de nosso próprio condomínio. Por isso, os momentos que demandamos identificações, como o que estamos atravessando agora, são também os momentos de rarefação de hipóteses.
O chamado lulismo foi uma hipótese transformativa que agora chegou ao fim. E com ela a sua antimatéria peessedebista. Ele criou um novo sujeito para o Brasil, o sujeito da pós-fome, da nova classe média, mas também o sujeito da nova direita. Contudo, o desejo que ficou recalcado, intocado, inconsciente e soterrado por identificações não é assim tão insabido: reformas políticas e tributárias, unificação da polícia tonada comunitária, transparência do Estado e isonomia, inclusive ao poder judiciário, distribuição equitativa de bens simbólicos, até aqui indiscutidos, da cultura, do ambiente e da terra, um novo pacto social entre ricos e pobres.
*Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP
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