Saúde!Brasileiros falou com autor de estudo que deu origem à moda da dieta sem glúten

Não há como negar: os produtos gluten free se tornaram um sucesso absoluto de público nos últimos anos. Traduzindo em números, calcula-se entre 20% e 30% por ano o crescimento desse mercado apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, pesquisas mostram que uma a cada três pessoas querem abandonar de vez o glúten.

Os cifrões se acumulam embalados pela procura cada vez maior desses produtos por não celíacos (celíacos são portadores de intolerância grave à substância) que acreditam ter intolerância à proteína encontrada no trigo, no centeio e na cevada.

Mas onde essa história começou? Um dos estudos marcantes sobre efeitos do glúten em não celíacos foi feito por um grupo de cientistas da Universidade de Monash, na Austrália, sob o comando do renomado gastroenterologista Peter Gibson.

Publicada em 2011, a pesquisa apontava para a existência da intolerância ao glúten em não celíacos. Ou melhor, como o próprio Gibson faz questão de esclarecer, seu estudo, realizado com uma amostragem pequena (34 voluntários), dizia que a intolerância ao glúten “poderia existir”, sem afirmar categoricamente que existia. 

A incerteza científica, porém, acabou ficando para trás e a ideia de que o glúten era um vilão a ser combatido se espalhou rapidamente.

Post ironiza dietas sem glúten no Facebook. E o debate está longe de se restringir à ciência. Foto: Reprodução.
Post ironiza dietas sem glúten no Facebook. E o debate está longe de se restringir à ciência. Foto: Reprodução.

“A dieta gluten free começou a ser promovida por celebridades e pseudocientistas usando o medo como combustível e o fato de que muitas pessoas se sentem menos inchadas quando comem menos trigo. Elas então assumem que o problema é o glúten e decidem aderir ao gluten free. Mas isso não faz sentido, uma vez que o trigo tem vários componentes”, disse Gibson à Saúde!Brasileiros.
 
De 2011 para cá, Gibson e sua equipe aprofundaram bastante os achados iniciais. Encontraram diversos novos componentes que podem explicar a reação adversa à ingestão de alimentos com trigo e testaram maneiras de “dessensibilizar” os pacientes, dispensando-os de dar adeus para sempre a determinados alimentos.

Mesmo assim, muita gente ainda segue sem querer nem pensar naquela proteína com seis letrinhas no nome.


Quando o problema realmente é o gluten
Não se pode negar que o glúten pode ser um problema de grandes proporções. É o caso de quem tem doença celíaca.

Para essas pessoas, o contato com o glúten deflagra um ciclo que começa com a inflamação do tecido que reveste o intestino e termina em uma série de sintomas bem desagradáveis. Pode até mesmo levar a alguns tipos de câncer, osteoporose, infertilidade e dores nas articulações.

O organismo dos celíacos considera o glúten um invasor, “um inimigo a ser eliminado”. Não é uma alergia e nem uma intolerância o que ocorre, mas sim uma doença autoimune, na qual o corpo provoca uma resposta desproporcional a algo banal que deveria fazer parte do seu funcionamento.

É semelhante ao que acontece na diabetes tipo 1, quando o organismo começa a destruir as células produtoras de insulina, o hormônio produzido pelo nosso corpo para ajudar a glicose a entrar nas células. E, assim como na diabetes, não há cura. O jeito é eliminar o glúten da alimentação para sempre.
Não sendo este o caso, o glúten não parece capaz de gerar problemas. “É muito difícil encontrar dados científicos que mostrem que o glúten é realmente perigoso para pessoas que não têm doença celíaca”, avalia o gastroenterologista Joseph Murray, médico e pesquisador da Clínica Mayo, nos Estados Unidos, e um renomado pesquisador do tema.


O aumento repentino dos celíacos

Murray, junto de outros cientistas, foi responsável por encontrar um dado que ainda intriga o meio acadêmico. Ao olhar amostras de sangue antigas, buscando traçar os casos subdiagnosticados de doença celíaca, ele percebeu um súbito aumento na quantidade de americanos celíacos após 1950.  

De lá para cá, a proporção de celíacos na população quadruplicou.

Todos os segmentos entraram na onda do sem glúten.  Foto: Robert Couse-Baker
Todos os segmentos entraram na onda do sem glúten. Foto: Robert Couse-Baker /Creative Commons.


“Não temos claro por que isso aconteceu. Seria uma mudança na nossa flora intestinal? Acho bem pouco provável, assim como é improvável que seja alguma mudança no uso de antibióticos. Alterações na nossa alimentação são uma possível explicação, já que houve mudanças no padrão alimentar nesse período, mas precisamos de mais dados para comprovar isso”, diz Murray.
Em busca de mais peças para montar esse quebra-cabeças, o grupo realizou um segundo estudo, publicado em fevereiro de 2015. Dessa vez, o que os cientistas perceberam foi que o crescimento no número de celíacos é maior entre as pessoas brancas que não têm origem latina.

Mesmo com o aumento detectado pelos pesquisadores, a doença celíaca segue algo não tão comum quanto a febre do gluten free nos faz acreditar. Em média, uma a cada cem pessoas é celíaca.


Não é gluten, são as FODMAPs

Se não é glúten, então qual é o problema para várias das pessoas que hoje acreditam não tolerar essa proteína? Qual seria a explicação para a irritabilidade intestinal sentida por tanta gente que não sofre de doença celíaca mas que vê melhoras na dieta sem glúten?

Um outro estudo
realizado por Gibson e seu grupo, logo após aquele no qual apontavam para a possibilidade de o glúten ser um problema também para não celíacos, joga luz sobre o tema. As responsáveis pelos problemas seriam as chamadas FODMAPs, sigla em inglês para oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis.

Peter Gibson, gastroenterologista e professor da Universidade de Monash. Divulgação.
Peter Gibson, gastroenterologista e professor da Universidade de Monash. Foto: Divulgação.
Para entender melhor, as FODMAPs são alguns tipos de carboidrato que não são digeridos por nós, humanos. Entre eles estão a lactose (um dissacarídeo) e a frutose (um monossacarídeo). Isso significa que uma lista de alimentos contendo FODMAPs seria ainda mais extensa que aquela de produtos com glúten. 

Apenas como exercício, vale a pena somar aos produtos contendo trigo e centeio (fontes de glúten), alimentos como maçã, pera, pêssego, manga, melancia, nectarina, cereja, abacate, frutas secas, mel, leite (de vaca, cabra ou ovelha), sorvete, iogurte (mesmo desnatado), queijo fresco ou cremoso, alcachofra, aspargo, beterraba, brócolis, couve, alho, alho-poró, quiabo, cebola, couve-flor, ervilha, grão de bico, feijão, lentilha…

Todos os alimentos citados acima são ricos em FODMAPs e podem gerar reações adversas em quem possui sensibilidade. Ou seja: se fosse necessário cortar todos eles, não restaria muito para a pessoa se alimentar.


Como se livrar do desconforto intestinal 

Por isso, no estudo com FODMAPs, Gibson optou por reduzir a ingestão desses alimentos, mas sem cortá-los completamente. Seria uma tática para ensinar o organismo a aceitar melhor essas substâncias. A técnica consiste em passar um período de seis a oito semanas seguindo a dieta para, depois, começar a reintroduzir os alimentos ricos em FODMAPs observando quais deles ainda causam reações.

Para o cientista, grande parte dos benefícios hoje atribuídos à dieta sem glúten são, na verdade, efeito da redução da ingestão de FODMAPs. “Gluten free significa cortar o consumo de trigo e centeio. Isso provavelmente reduz a ingestão de FODMAPs pela metade. Para algumas pessoas, pode ser o suficiente para sentirem algum efeito”, diz Gibson.

O fato do trigo e do centeio serem, ao mesmo tempo, fontes de glúten e FODMAPs não significa, porém, que ao aderir à dieta gluten free a pessoa necessariamente estará livre do problema.

Afinal, uma torta de alho poró, ainda que seja gluten free, tem alho poró, que é rico em FODMAPs. Por isso, o melhor é testar pacientemente cada alimento para saber qual deles, exatamente, está causando incômodos.


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